terça-feira, agosto 22, 2006

Escritos De Um Não-Lugar

Tudo em Translávia é rápido. A rua só é rua enquanto se caminha por ela. As árvores só são árvores enquanto há folhas verdes caindo ou balançando. As pessoas só são pessoas enquanto vivem: andando, pulando, escorregando, malhando, correndo, girando, agonizando. Não há memória, não há história, não há como voltar atrás. “Me movo, logo existo” é a única lei na Constituição. A inércia é o grande perigo de Translávia - um lugar feito unicamente de movimentos acelerados. É o país do gerúndio, da ação no tempo presente.

Alimásia é a capital. É uma cidade-turbina, onde a rotação das coisas está em velocidade máxima. Os carros, os ônibus, as multidões, os postes, as cartas, os sentimentos. Tudo existe num movimento frenético repetido a todo instante. Se algo parar, esse algo não existe. Por isso não há em Alimásia bancos de praças, camas ou cadeiras. Não há tempo de descanso. Não há tempo para dormir. Dormir é morrer. Na capital ninguém morreu. Na capital as pessoas vão morrendo. E ninguém se lembra destes que vão morrendo.

A partir da capital, a velocidade da ação diminui. Existem cidades de rotação média, rotação mínima e de rotação quase-nula. Em Algarávia, um lugarejo que se encaixa nessa última categoria, está ocorrendo um movimento social. A bandeira do anti-frenesi são agitadas por habitantes absolutamente contrários a instantaneidade de Translávia. O governador que mora na capital soube rapidamente do agito, ou melhor, do anti-agito promovido pelos rebeldes. É que os manifestantes andam devagar, moluscamente devagar pelas ruas, quase parando, quase não existindo, numa quase não-ação, atrapalhando a aceleração constante do trânsito. Pode se dizer que é o movimento do não-movimento, encarado pelo governo como ameaça nacional. Tropas do Exército vieram até Algarávia. Soldados colocaram os rebeldes para correr. Pessoas pararam: houve mortes.

O líder do movimento fugiu célere para as montanhas de Benísia. Não sabe mais por que fez isso. Só sabe que, cansado, parou. E parando, morreu. É do alto dessas montanhas que se percebe uma visão impressionante de Translávia: enquanto tudo se move, uma camada espessa de poeira se acumula na encosta do céu. Ninguém ainda se deu conta, nem mesmo esse que morreu, mas quando não houver mais chão também não haverá mais o país. Além de correr, os habitantes de Translávia precisarão voar.

domingo, agosto 06, 2006

O que aconteceu com o cão?

— Foi veneno!
— Tem marca de tiro na perna!
— Que tiro o que idiota! Isso é uma mordida!

— Três idiotas. Ele está dormindo.
— Ah, sim, dormindo. Descansou, vestiu o paletó de madeira, já era, bye bye, atravessou a ponte. E de veneno, foi de veneno.
— Deve ter entrado em casa de alguém, tentou pegar alguma coisa. Teve o azar de ser a casa do caçador. Um só tiro e olha o que temos aqui...
— Nada disso. Sem chance. Tem muitos deles no bairro. Andou com outros vagabundos e acabou se complicando. Comprou briga. Levou a pior.

— Ele respira. Está ofegando. Observem os pêlos do nariz a se moverem. Observem. Ele dorme.
— Os olhos estão vermelhos. As articulações, roxas. É o tipo de veneno para matar ratos de celeiro.
— Não há dúvidas. Pode até ser que morreu há poucas horas. Morto está. O sangue, qual a explicação?
— Ele era valente. Concordo até que tenha brigado. Dorme, descansando.
— Veja a baba amarela na grama. Efeito do veneno.
— A bala atingiu o fígado, certamente.
— Nada disso. A mordida do agressor comprimiu todos os órgãos internos.
— Nenhum do três idiotas nunca babou enquanto dormia?
— Rand Up.
— Calibre doze.
— Caninos.
— Zzz.

Os donos da casa chegavam. Os quatro ficariam observando do sótão. Tentariam ser eficazes na próxima noite.


[jb]
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