domingo, março 19, 2006

Hebdomática

MARX
O sangue coagulará na boca dos predadores.

JOYCE
Um homem que anda na rua deve odiar calçadas.

SARTRE
O corpo não é nada se não puder ser liberdade.

ESOPO
A espada corta os dois lados da folha.

PESSOA
Descaminho é o trajeto do equilibrista até a outra ponta.

NIETZSCHE
Existem coisas na montanha que Moisés não trouxe.

SHAKESPEARE

O gato não desce da árvore e a criança fica sem brincar.

[jb]

quinta-feira, março 09, 2006

Quem somos antes do amanhecer II

Por que é preciso que tenhamos corpos? Não basta esta alma habitada em fumaça e que guia-se através de miragens noturnas? Não é o bastante ter que carregar pedras, azulejos e lápides durante o breve respirar? Decerto este casulo epidérmico não agüenta mais do que alguns murros ou um simples olhar afiado. Algumas pessoas até olham para o meu rosto e dizem haver nele algum brilho, um convite ao toque, ao afago ou ao beijo. É incrível como não percebem a rachadura transversal bem na face esquerda. É notável. Eu olho no espelho e este me mostra trincado. Mas não considero isso um problema a resolver. O peso, a altura e o jeito de andar dessas carnes sobrepostas numa carcaça nunca falarão do que vejo a partir dos intestinos. Se me percebessem ao avesso, me veriam melhor, mas ainda assim não veriam o corte no rosto nem sentiriam a falta de um pulmão aqui dentro.

Sendo névoa, neblina e nuvem, ignoro tripas, veias e artérias que me prendem ao chão. Me condenso e me disperso com um sopro. Me sublimo e me vaporizo. Ganho a instabilidade melíflua que o corpo me impede e me interrompe antes mesmo de dar um passo. Sou sublime: atravesso muros, paredes e jardins; invado os quartos dos que dormem e denuncio seus erros. Desligo a TV. Sou exaltado: prego a virtude (a minha) e revelo os vícios alheios. Não importa se os cães mordam minhas pernas ou se as pessoas me machuquem. Estou acima do corpo, dos músculos, da matéria. Sou um fantasma inebriado pela penumbra e não sinto nada além da proximidade da morte de todos. Sou um induto sem forma desnudando a manhã feita de limites, de infâncias e de zinco.

Depois que o primeiro ônibus sai às ruas, a alma se exaspera e o meu braço arranhado fica cada vez mais visível. Levo comigo assassinatos, adultérios, suicídios, mentiras, solidões, desafetos, súplicas, arrogâncias e inocências. Não sinto a relevância dessas rotinas. Mas meu corpo sente. Ele mostra aos que saem das casas o meu desacerto com o mundo. Sou desalinhado, sou uma curva perigosa, sou mendigo que esmola entendimento. Desdenho os líquidos derramados pelo corpo: sangue, lágrimas, suor, urina, pus, catarro, enfim, coisas de meus sistemas. Mas as pessoas se irritam com isso. Não gostam de lembrar que somos animais. Somos um instante formados à decomposição.

Sendo apenas um vapor (quem sabe talvez um orvalho) me desconsidero. Deixo o corpo à revelia do ar, à oxidação das peles e dos nervos. Enquanto os demais tomam banho e fazem o café matinal, eu simplesmente respiro. E corro. Somos pó. Poeira levantada durante a fuga.

[jb]
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