domingo, julho 23, 2006

Gato

Desceu, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto dos pobres familiares que cobriam a boca com as mãos enquanto se comprimiam ao pé da escada. Os dedos estavam ao ponto de apertar o gatilho. A arma postada junto ao ouvido. Ele pediu que ninguém interferisse, senão iriam ver o que não queriam. Passou pelo cunhado e elogiou a camisa listrada. Passou pelo sobrinho e o convidou para jogar futebol no domingo. O menino abaixou a cabeça. Passou pela irmã e agradeceu as tortas de limão que esta fazia. Passou pela prima e apenas fez um aceno de cabeça. Mais dois passos e chegou até o pai. Frente a frente com o velho, afastou a arma do ouvido e a deixou estar deitada na palma da mão direita, como um garçom que segura na bandeja um copo de água oferecido ao cliente. O pai ficou imóvel, e num silêncio trêmulo, recusou o refresco. O filho consentiu, segurou firme a arma e apontou novamente ao ouvido. O choro de uma criança na sala quebrou o silêncio. Ele nem piscou. Caminhou em direção à porta, dando às costas para os outros. Os olhares alheios eram espinhos nos ombros. Atravessou o limiar. Fechou a porta com a mão que não segurava nada. Alguém gritou lá dentro. No andar de cima, Lúcia e o outro já não existiam, mas estavam vestidos. O gato lambia o pêlo no telhado de zinco.

segunda-feira, julho 10, 2006

Novo Mundo

Trêmula,
a flâmula,
anuncia terra à vista.

Frenética,
a carne,
suspira por um descanso.

Instável,
a nau,
ancora ligeira na praia.


Estupro, à mata virgem.
Estranho, esse homem sem roupas.
Estrago, à natureza impune.

Antes, uma reza ao Nosso Senhor:
Pela Coroa,
Pelas almas,
Pelos naufragados,
Pela rica terra que hoje descobrimos.

Desculpe-nos pela bagunça.
A gente arruma tudo depois.

[jb]
Google