terça-feira, maio 29, 2007

Cachecol

Enrolado em fogo sonâmbulo
Tece a cortina do sono
E da embriaguez

Perdeu a quentura da fala
No ar sem estereótipos
Enrugado de tédios

Vaporiza toda sede
Sublima toda fome
Engole qualquer faísca ao redor.

[jb]

segunda-feira, maio 14, 2007

A fuga

S. estava num deserto. O vento soprava seco e agressivo. Os pés descalços estavam cobertos pela areia fofa. A mente ardia com o sol constante. E o pensamento longe, mas apreensivo. S. estava em fuga. Desde cedo caminhava e permanecia em contínuo estado de alerta. Seus perseguidores atentavam contra ele, e sabia que viriam atrás para atormentá-lo; fazer S. pagar por seus erros.

Já era tarde, talvez mais tarde do que S. pensava, e, num relance, ele percebeu um ruído. Era um barulho como de muitos soldados marchando, mas S. não sabia se eram soldados exatamente. Tinha quebrado muitas regras e seu cansaço não o deixava refletir profundamente nestas questões. À distância avistou a poeira que se levantava formando uma cortina de névoa, areia e fuligem. Os inimigos estavam próximos e S. precisava se apressar. Lembrou-se do carro que abandonara na auto-estrada; era velho, mas o conduziria com mais rapidez até seu destino desconhecido.

Enquanto a areia queimava os pés e o sol torrava a cabeça, S. entrou no milharal. Como seu tamanho era menor do que qualquer pé de milho, estaria seguro por mais alguns instantes e poderia pensar melhor na sua rota. Avançou vários metros adentro da plantação, embora cada passo fosse uma tortura. Subitamente, um estrondo terrível. S. percebeu muito próximo o ronco de motores e pneus se arrastando sobre o solo. Metais tilintavam e vozes davam ordens. A colheita maldita estava para começar.

S. correu alucinadamente. Por pouco as máquinas colhedeiras não o lançaram dentro do aparador e debulhador de grãos. Chegou ofegante até um muro. Era um muro incrível, feito somente de folhas secas sobrepostas umas sobre as outras. Ao simples sopro de S. o muro ruiu e as andorinhas que pousavam sobre ele, assustadas, voaram para o leste. À sua frente vislumbrou aquilo que parecia ser um depósito de ferro velho. Havia carros queimados, tanques de guerra, empilhadeiras, betoneiras, guindastes e navios fantasmas. Era um cemitério de parafernálias retorcidas e enferrujadas. Sobre um monte de carcaça do que seria um Dodge Dakota, avistou um sorridente abutre que, a julgar pela expressão, parecia estar se satisfazendo com a decomposição de uma carniça gorda e suculenta.

S. ignorou a mórbida ave e se apressou em encontrar um veículo em bom estado para fugir daquele lugar. Tinha deixado muitos rastros e, em breve, todos o encontrariam. Após pisar em poças de lama que ardiam como enxofre, S. chegou perto de uma cabana. A chaminé fumegando denunciava alguém em casa. Porém, poucos metros atrás, um alvoroço ensurdecedor: um bando de abutres dirigia velhas empilhadeiras e um enorme guindaste se locomovia como uma borboleta. As máquinas envenenadas avançaram rapidamente e S. teve dificuldade de se desvencilhar. Pensou em gritar para alguém naquela cabana, mas, sem muita opção, lançou-se em cima de uma carruagem carregava de feno. O movimento foi inútil. Erguido por uma das empilhadeiras, foi arremessado com violência para dentro de um barril de petróleo. O forte impacto fez o barril cair e rolar desfiladeiro abaixo, terminando por se despedaçar próximo da praia.

Viscoso e lubrificado, S. se levantou. Estava moído, mas se estivesse morto, certamente seria o banquete daquela noite para os miseráveis abutres. Seu amigo B.O., que estivera com ele desde o começo e S. não tinha percebido (S. sempre foi mesmo bastante desligado), o ajudou naquele momento. Comeram frutas e beberam água de um riacho próximo. S. pareceu recuperar as forças. Ao longe, seu olhar definiu uma estrada que serpenteava a montanha. Resolveu caminhar naquela direção. Pegou seu rifle e calçou botas. Seria uma jornada dura e perigosa.

Mal dera vinte passos quando ouviu o mesmo ruído que percebera quando estava no deserto. Os inimigos, espertos como eram, estavam vindo pela estrada. Pior ainda: estavam vindo também pelos ares. Instantaneamente, helicópteros surgiram nos céus como gafanhotos e começaram a atirar. S. ficou sem saída; estava numa praia deserta cercada por imensas dunas. B.O. se desesperou, pegou o jipe e fugiu, deixando seu parceiro. S., também em desespero, mergulhou no mar revolto. A água era salgada e ardeu as feridas abertas. A praia foi completamente destruída por mísseis e granadas. S., nas profundezas, conseguiu atingir a cerca. Pulou a porteira, atravessou o campo e, mesmo com as mãos enfaixadas, abriu a janela.

Como diria Hagar, “como são bonitas as montanhas brilhantes!”.

terça-feira, maio 01, 2007

Todos nós fomos feitos na mesma olaria

Quando a líquida lâmina do silêncio atravessa o salão
Desperta a voz cimentada da pele
E a membrana fosforescente do olhar
Os pés soluçam movimentos geométricos
E as mãos se escondem entre a parede e o corpo

Tapete é serpente; abajur, andorinha
Sofá, liberdade; mesa, compromisso

As ambições sublimam no teto
Enquanto a vontade desce sem pressa a escada
Fora ecoa uma música arenosa
Mas dentro o ouvido destila o som dos pulmões

Cama é congresso; janela, pedaço
Tijolos estão na garganta; águas, no mundo

Sim,
ela chegou.

[jb]
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