sexta-feira, março 27, 2009

Cor(re)lógio

Cara de agenda
Pés de compasso
E a pressa verde-semáforo

Caminha na faixa
Na direção das 16:30
De roupa branca-médico

Arrastam-se no asfalto
Atrasos de relógios diferentes
Em tom vermelho-comunista

Persegue o horário
Tropeça, cai, levanta: risos
Vê o céu azul-semgraça

Sob o vidro riscado
Ponteiros riscam a hora
O desespero é sem cor, mas amarelo

[jb]

segunda-feira, março 09, 2009

Dois sentidos. Um medo.

Havia certa displicência no olhar. Janelava um desinteresse sorrateiro, dissimulado, escandinavo, canino. Não, não era um olhar quente, de fogo, incêndio, combustão. Era um olhar de potência: inflamável, tenso, derradeiro. Um olhar em brasa. Brasa escondendo labaredas dentro. E tinha a pele. Lençol cobrindo a cama bem arrumada. A pele era parede branca, caiada, com aqueles carunchos esmaltados pelo tempo. Havia certa displicência na pele também. Mas uma displicência fria. Uma frieza dura, rugosa, aterradora. Ainda assim, havia certa beleza nessa pele. Sim, aquela beleza de cerca coberta de neve, de lago congelado, de floresta boreal. O gelo é a única coisa tão fascinante como o fogo. O gelo é um fogo sem chamas. E ali, sobre a cama, a pele recebia o fogo-brasa dos olhos. Os olhos inflamáveis derretiam com a pele ártica. As mãos tateavam a frieza da pele. Os olhos de fogo vigiavam o mover das mãos. Parecia, ao menos. Elas tentavam o redescobrir da pele. As montanhas de verão, os passeios de inverno, o florescer de setembro, o nublado alegre de abril. Os toques, as distâncias, as esperas, as surpresas, os convites, as graças. Tudo escrito agora, ali, na pele. Pegadas na neve. As mãos não tocaram os olhos: esquentava. Os olhos abertos, em vulcão. Estranhos. Não haviam visto de tudo. Viram o bastante. Viram uma tarde em que a cegonheira trazia carros à cidade. Achava que as pessoas chegavam assim ao mundo também. Viram as risadas na sorveteria. As conversas no banco da escola. O céu que parecia enraizar-se atrás da serra. Não, não. Eles não viram o bastante. Por isso o desinteresse. É uma espécie de vingança velada, feita de raiva, veneno e faísca. Pelo mar não visto. Pela data que não o esperou. O dia negado, o beijo negado, o poema negado. Os olhos resignam-se em fechar. E sobre a pele cai mais neve. Panos brancos nos móveis novos. A casa inédita, fechada. As mãos acenam. Um aceno difícil, eterno. Displicente. O engano tem cinco dedos e teme tudo o que queima.
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