quarta-feira, setembro 30, 2009

Corredor

Vivia na cidade grande com coisas quentes na cabeça. Não sabia o que era tranquilidade ou outra espécie de coisas pequenas. Acostumou-se ao mundo gigantesco. Viadutos, rodovias, pontes, prédios, relatórios e soberbas. E ela também era assim. Igual ao ambiente. Talvez um pouco menor por dentro. Mas as coisas sempre aparentam ser maiores do que pensamos, mesmo quando o pensamento já seja enorme. Somos expansivos. Somos sem fim. Principalmente quando se vive numa cidade feita de prazos e rotinas. Rotinas lancinantes. Ruas imersas em infinitos.

Toda vez que saía do escritório, ao fim da tarde, passava na ótica para ver modelos de óculos. Cada dia era um diferente. Tinha interesse, na verdade, pelo guardador de veículos ao lado. Rapaz normal que veste sempre uma camisa verde. A cidade não permite muitos contatos. A vida é pequena, nesse sentido. Tudo pode girar ou ser grande, mas no campo dos relacionamentos há uma pequenez de corredor. Há um terror que assola todo dia. Nervuras de dias inteiros de sol e pedidos. Quando chega fim de semana, chove castigando.

Havia displicência com o futuro, com a preocupação comum de sobrevivência e respeito. O que queria era pequeno. Teria de se mudar. De cidade, de profissão, de planos. Depois de dois meses chovendo nos finais de semana, decidiu que no próximo domingo-sol visitaria o lugar indicado no catálogo turístico.

quinta-feira, setembro 24, 2009

Tarrafa

Viera de cidade mais pequena. Ele, filho único de sexo masculino numa família açoriana. Homem miúdo. Alma tranquila. Mente só para o trabalho. Desde os sete trabalhava no mercadinho da rua central. Ajudava os pais pesqueiros. Pensava em ser médico. As irmãs, duas irmãs mais velhas, uma dois e outra três anos a mais que ele, eram atendentes na loja de armarinhos. Nos fins de semana, costuravam roupinhas de bebê. Pensavam, as duas, em casar logo.

A vida não era fácil, todos sabem. Nunca foi para ninguém. Nascer homem é sempre melhor num mundo desses. Ele se lembra de uma conversa entre o pai e a mãe quando tinha lá seus dez anos.

– Ainda bem que temos ele. Já imaginou três mulheres em casa! Seria muita incomodação.
– Mas ele com esses sonhos de médico ainda vai dar trabalho. Sei lá. Ainda é cedo. Talvez mude de ideia. Algo próximo da gente. Menos barqueiro.
– Não sei. Ele sempre fala nisso. Desde que viu aquela revista. Até pediu a revista para o homem. Está lá guardada na gaveta.
– E a Gabriela sempre chegando depois do horário. Ah, menina...

Estava chegando da escola, quando pescou o diálogo. Levava jeito.

quinta-feira, setembro 03, 2009

Onze palavras

Ele sobe a escada como se turista fosse. Em cada degrau para e observa. A lagoa com frio, a montanha sonolenta, uns guris ao longe jogando bola. Abaixo, pessoas se apinhando ao pé da torre.

Era um domingo. Bom dia para terminar coisas atrasadas. Beto chegou cedo, quando ainda não havia ninguém no parque. Esperaria até o meio dia. Daria tempo aos jornalistas para fazerem a matéria completa amanhã. Beto conversou com várias pessoas. Até com crianças. Não tinha muito jeito com elas. Falava bem mesmo era com as mulheres.

Ele era da própria cidade. Nunca fora no parque, no entanto. Sentia-se como estrangeiro. Era o único ali sem máquina fotográfica. A torre até que não era alta. Um pouco mais que cinquenta degraus metálicos. Do alto do penúltimo degrau, quando já era possível ver a rodovia que risca a serra do mar, ele percebeu em sua curiosidade rara um homem conversando ao ouvido com uma mulher. Namoro na torre?

Era o dia de Beto. Domingo. E ele não iria embora sozinho. Pensou numa criança que pulava sobre a plataforma o tempo todo. Incomodava. Mas quando viu a mulherzinha, não teve dúvidas. Era ela. Beto se aproximou. Falou palavras. Onze. Baixinho.

A curiosidade de turista o chamava para o outro lado. O da praia. Um passo acima e poderia contemplar a cidade com olhos panorâmicos. Já na plataforma, ele pode ver que a rodovia na montanha é como uma cachoeira listrada. Daria bom quadro para um pintor medíocre. Lembrou-se do homem e da mulher. Olhou. Haviam descido. Sem passar por ele.

Os jornais deram a notícia com riqueza de detalhes na segunda. Beto saiu na capa. Ela não, só o nome. E a transcrição de um bilhete com palavras. Onze.

Ele demorou lá em cima. Nem percebeu o alvoroço lá em baixo. Ficara deslumbrado ao ver a cidade de um modo nunca visto. Ele morava ali havia 35 anos. Quando desceu já passava do meio dia. O parque estava tranquilo. Famílias faziam piquenique nos gramados. Foi uma tarde feliz. Coisa que não sai no jornal. Pena que ele não é de se interessar pelo que acontece na cidade. Não lê jornal.
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