domingo, junho 25, 2006

Trinômio da Aridez Humana

A TERRA
Do pó que somos feitos, fazemos nossas casas.
Da casa que nos abriga, fingimos nossos medos.
Do medo que nos acusa, criamos camas de barro.

O HOMEM
A peste assola ao meio-dia. O sentinela desapercebe o inimigo. O pai busca no bolso alguns trocados para o pão. Não se pode aguardar tempos de paz enquanto não chove, enquanto existir horas e prazos, enquanto haver coisas a serem guardadas, enquanto persistir a urgência em sobreviver.

A LUTA
José foi iludido por uma miragem. José desapontou a mulher e os filhos. José é tido como desonesto na vizinhança. José não foi à igreja no domingo passado. José vai deixar a cidade. José não tem cachorro pra levar junto. José não é um homem. José é só um nome.

[jb]

terça-feira, junho 13, 2006

Retorno de K.

Um dia o retorno acontece. Quando os silêncios já não são mais necessários e todos os ressentimentos não são nada diante da urgência em dissimular a vida. Nada a perder depois de vinte anos sem ser reconhecida pelo simples fato de existir, de poder colocar o pés brancos numa sandália e caminhar na rua sem pó. Os olhos azuis, os cabelos loiros, o corpo esquálido mas sensual, o sorriso que deixa a gente sem graça, o vocabulário dos braços que insiste em dizer palavras novas. Nada disso é importante após os filhos crescerem e rejeitaram a salada de beterraba. Após os anos se converterem em pedras e convencerem os homens que o tempo não cabe numa ampulheta.

K. voltou. Terminou o contrato com os inquilinos. Habitará novamente a velha casa abandonada cinco anos atrás, quando era só ela e seus sonhos nesse mundo. Volta agora com marido e filhos e com uma solidão arranjada no caminho. Sim, acompanha-a uma solidão toda dela, uma solidão masculina e mais duas solidões que crescem à revelia das outras duas.

K. surpreendeu-se com a casa. Tudo estava tão organizado, firme e limpo como à época da partida. Paredes, cômodos, jardim, teto, janelas. Parece que a casa não sofrera nenhuma interferência do tempo e do descuido dos homens, ao contrário dela. K. ficou feliz pela casa. Era uma felicidade boa, uma quase-esperança.

Arrumou as bugigangas da mudança com certo ânimo. Sorriu para um dos filhos quando percebeu que os pratos, novos, não quebraram com as truculências da viagem. À noite, antes de dormir, beijou a boca sem gosto do marido, e virou os olhos para a parede. Estava cansada. Disposta a ouvir somente as coisas concretas.

Desde que casou, só acredita naquilo que pode tocar com as mãos.

sábado, junho 03, 2006

Liquidez Pós-Moderna

Duvido muito desse cinza homocinético na parede.
Duvido muito dessa parede pintada com cal.
Duvido muito desse teto perturbado pelo barulho insilente do ventilador.

Não creio que esteja só, embora exista apenas uma sombra aqui.
Não creio que os números do calendário sobre a mesa estejam certos de seus dias.
Não creio que os livros empilhados possam atingir o telhado até o fim de semana.

Desacreditei totalmente das bulas, dos contratos e do aviso do lado de fora da porta.
Desacreditei das epígrafes, dos consolos e das admoestações.
Desacreditei também das recompensas e faço as coisas pela exata essência de estar fazendo.

Suspeito.
Suspeito.
Suspeito.
Não existe água doce ou salgada:
Só existe água. Corrente.

[jb]
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