sexta-feira, dezembro 18, 2009

Apocalipse de João

Cesto vazio ao fim da jornada
João lança a rede à esmo
Puxa
Vem seis apocalipses num lance só
Tenta de novo
E de novo
Trinta e três no total

João nunca viu daquilo
Teria um fim-do-mundo para cada dia do mês
E ainda sobrariam três

Venderia na banca por bom preço
Três apocalipses embrulhados em jornal
Só hoje:

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Entenda o mundo

DA TEMPERATURA DA ÁGUA LÍQUIDA

O aquecido debate sobre a questão do aquecimento global e, por conseguinte, da continuidade das condições naturais de convivência e sobrevivência no homem na Terra, está travestido pela cortina da discussão pública e política em âmbito planetário. No degelo de simpósios, conferências, congressos, fóruns e encontros afins, o que se mostra à superfície é um interesse menos politicamente correto, e mais esquivo e corrosivo. Sob a lâmina da contextualização e da análise sistemática, a discussão é, sem dúvida, econômica. Um jogo entre esferas financeiras, mercados consumidores, ativos de precificação, nações emergentes e sistemas nacionais de alcance mundial. Marginalizando os interesses obtusos, especialistas também criticam a esteticalização e a fetichização do debate, cenário que tornou qualquer audiência sobre o tema um imbróglio de informações desencontradas e precárias, mas vendida pela mídia como oportunidade única de encaminhamento de soluções. Na esteira dos sucessivos debates, protocolos, requerimentos, documentos, pedidos, propostas, cartas abertas, moções e outros papéis da burocracia discursiva não traduzem políticas práticas de ações efetivas. Há uma dicotomização do problema, entre países abastados e nações miseráveis. As falas são, portanto, conflitantes. Não há o diálogo puro e lúcido. E nem todos os atores sociais estão envolvidos. O argumento longe da perniciosa intenção econômica poderia deixar sem mácula os indicativos de observância e aplicabilidade das propostas apresentadas. Falta uma vontade supranacional para encontrar o caminho a trilhar. Intermitentemente, cada pisada é dada em solo estranho e qualquer avanço definitivo é desacreditado pelo ecossistema humano. Por enquanto, o certo é que árvores continuam sendo derrubadas para virarem protocolos autografados por lideranças de pensamento curto e raso. O urso polar, por sua vez, já não se confunde mais com o branco da neve. Não há branco, nem gelo. Daqui a pouco, nem urso. Sobra papel.

terça-feira, dezembro 08, 2009

Saldo

Ônibus chegam à ilha
Náufragos cansados esperam a fuga
Eles sempre retornam no outro dia

O cartão de passagens dá para o mês inteiro

quarta-feira, novembro 18, 2009

Incendiário

Escrevo após incêndios
Quando tudo é desmanche e brasa morta
Quando palavras em cacos, pedaços, carvão
Anseiam respirar fora dos escombros

De ruínas ergo varandas e sacadas
De muros caídos levanto palácios
De mansões fumegantes faço jardins
De ruas esburacadas pavimento pisos decorados

Em versos e estrofes reconstruo a cidade
Casas sucumbidas ao fogo voltam a aquecer
Fábricas apagadas retomam seus barulhos
Esquinas de cinzas espalham cruzamentos

Não me prosto ao caos e ao desespero
Não me prosto à bomba e ao meteoro
Não me prosto ao trovão e à enchente
Não me prosto ao assassino e à fuga

Permaneço e me elevo
Subo a escada que construi
Chamo os habitantes às moradas
Antes mortos, agora vivos, natos

Escrever é obra de ressurreição
Empreitada de três dias (ou nem isso)
Ascendo ao céu quando tudo pronto
Então deito e descanso e amanheço

Me carrego de substantivos e vírgulas
Até que alguém grite verbo inédito
No quinto andar de um prédio em chamas
Espero o desabamento e vou

Levo pás e tratores
Numa caixa, livros e discos
A letra é manifesto quando sufocada
A canção é linda quando reverbera no pó

terça-feira, outubro 27, 2009

Oca sombra

Entre tua pele meridional e meus olhos de acrílico
Há um brilho boreal de manhã fria e branca
Há uma luz que semeia sorrisos em campos de neve
Há uma névoa acorrentando duas respirações

Eu vim de longe
Carrego na sola mapas de descobrimentos
Na palma das mãos, anagramas de vontades
O pó, o asfalto e a lama testemunham a jornada
Uma palmeira alta, um gato pardo e uma menina azul
Ouviram minhas composições

Hoje, dia plagiado de ontem
(num deslize criativo do Criador)
Neste vale de montanhas infinitas
Encontro teu olhar de galáxia
Vejo teu cabelo de cores vespertinas
Orbito teus desenhos de noite aberta

Eu, seco e lento
Eu, tolo e espinho
Eu, caminho estreito
Eu, miopia e fraqueza
Eu, amarras e cercas
Eu, pedra, cisco e gelo
Me penumbro
Me vazio
Me mudo
Analfabeto

Entre tua pele e meus olhos
Entre tua boca e minha música
Oca sombra muralha o renascimento do mundo
Você ainda me atravessa
Levo na garganta as iluminuras da tua palavra
Por isso falo xadrez e escrevo branco
Me revelo em respingos no abrir da tua varanda
Mas sou muito desabrigo para morar na tua casa

terça-feira, outubro 20, 2009

Deus também tem quatro letras

O medo é quadrado: forma de sombra
Arranca ângulos de tempestades
Traz noite e ânsia

O medo é quarto: túmulo aceso
Respira o odor fóssil do antes
Gargareja mofo e angústia

O medo é quadro: adorno na alma-de-estar
Visita a infância de correrias e sol
A perna sem cálcio não pisa mais o chão

O medo é quarteto sombrio:
Morte, culpa, fraqueza, covardia
Toca instrumentos de sopro
Crava espinhos roucos na plateia

O medo é quatro: usurpador da trindade
Número de voo em abismo
Múltiplo de cadáveres na segunda

O medo é quadra: geometria de assassinos
Espreita nas esquinas os preocupados
Faz muros bloqueando fugas

Eis o medo:
Fogo frio
Água negra
Estátua de vento
Poeira dos cantos

Eis o medo:
Hipotenusa dos fracos

Eis nosso inimigo, meu amor

terça-feira, outubro 06, 2009

Rã cor

O preso preto
amarga amarras marrons
por dois azares azuis

Ele, verme vermelho
amara amarelo
deixou ela de rosto roxo

A puta púrpura
bradou brancos femininos

Mulher de verdes verdades
abriu porta de lilás liberdade
gritando desgraçados degradês

Enquanto arranha paredes
em cinza cinzas
Na feira ela compra
laranjas (bem) alaranjadas

quarta-feira, setembro 30, 2009

Corredor

Vivia na cidade grande com coisas quentes na cabeça. Não sabia o que era tranquilidade ou outra espécie de coisas pequenas. Acostumou-se ao mundo gigantesco. Viadutos, rodovias, pontes, prédios, relatórios e soberbas. E ela também era assim. Igual ao ambiente. Talvez um pouco menor por dentro. Mas as coisas sempre aparentam ser maiores do que pensamos, mesmo quando o pensamento já seja enorme. Somos expansivos. Somos sem fim. Principalmente quando se vive numa cidade feita de prazos e rotinas. Rotinas lancinantes. Ruas imersas em infinitos.

Toda vez que saía do escritório, ao fim da tarde, passava na ótica para ver modelos de óculos. Cada dia era um diferente. Tinha interesse, na verdade, pelo guardador de veículos ao lado. Rapaz normal que veste sempre uma camisa verde. A cidade não permite muitos contatos. A vida é pequena, nesse sentido. Tudo pode girar ou ser grande, mas no campo dos relacionamentos há uma pequenez de corredor. Há um terror que assola todo dia. Nervuras de dias inteiros de sol e pedidos. Quando chega fim de semana, chove castigando.

Havia displicência com o futuro, com a preocupação comum de sobrevivência e respeito. O que queria era pequeno. Teria de se mudar. De cidade, de profissão, de planos. Depois de dois meses chovendo nos finais de semana, decidiu que no próximo domingo-sol visitaria o lugar indicado no catálogo turístico.

quinta-feira, setembro 24, 2009

Tarrafa

Viera de cidade mais pequena. Ele, filho único de sexo masculino numa família açoriana. Homem miúdo. Alma tranquila. Mente só para o trabalho. Desde os sete trabalhava no mercadinho da rua central. Ajudava os pais pesqueiros. Pensava em ser médico. As irmãs, duas irmãs mais velhas, uma dois e outra três anos a mais que ele, eram atendentes na loja de armarinhos. Nos fins de semana, costuravam roupinhas de bebê. Pensavam, as duas, em casar logo.

A vida não era fácil, todos sabem. Nunca foi para ninguém. Nascer homem é sempre melhor num mundo desses. Ele se lembra de uma conversa entre o pai e a mãe quando tinha lá seus dez anos.

– Ainda bem que temos ele. Já imaginou três mulheres em casa! Seria muita incomodação.
– Mas ele com esses sonhos de médico ainda vai dar trabalho. Sei lá. Ainda é cedo. Talvez mude de ideia. Algo próximo da gente. Menos barqueiro.
– Não sei. Ele sempre fala nisso. Desde que viu aquela revista. Até pediu a revista para o homem. Está lá guardada na gaveta.
– E a Gabriela sempre chegando depois do horário. Ah, menina...

Estava chegando da escola, quando pescou o diálogo. Levava jeito.

quinta-feira, setembro 03, 2009

Onze palavras

Ele sobe a escada como se turista fosse. Em cada degrau para e observa. A lagoa com frio, a montanha sonolenta, uns guris ao longe jogando bola. Abaixo, pessoas se apinhando ao pé da torre.

Era um domingo. Bom dia para terminar coisas atrasadas. Beto chegou cedo, quando ainda não havia ninguém no parque. Esperaria até o meio dia. Daria tempo aos jornalistas para fazerem a matéria completa amanhã. Beto conversou com várias pessoas. Até com crianças. Não tinha muito jeito com elas. Falava bem mesmo era com as mulheres.

Ele era da própria cidade. Nunca fora no parque, no entanto. Sentia-se como estrangeiro. Era o único ali sem máquina fotográfica. A torre até que não era alta. Um pouco mais que cinquenta degraus metálicos. Do alto do penúltimo degrau, quando já era possível ver a rodovia que risca a serra do mar, ele percebeu em sua curiosidade rara um homem conversando ao ouvido com uma mulher. Namoro na torre?

Era o dia de Beto. Domingo. E ele não iria embora sozinho. Pensou numa criança que pulava sobre a plataforma o tempo todo. Incomodava. Mas quando viu a mulherzinha, não teve dúvidas. Era ela. Beto se aproximou. Falou palavras. Onze. Baixinho.

A curiosidade de turista o chamava para o outro lado. O da praia. Um passo acima e poderia contemplar a cidade com olhos panorâmicos. Já na plataforma, ele pode ver que a rodovia na montanha é como uma cachoeira listrada. Daria bom quadro para um pintor medíocre. Lembrou-se do homem e da mulher. Olhou. Haviam descido. Sem passar por ele.

Os jornais deram a notícia com riqueza de detalhes na segunda. Beto saiu na capa. Ela não, só o nome. E a transcrição de um bilhete com palavras. Onze.

Ele demorou lá em cima. Nem percebeu o alvoroço lá em baixo. Ficara deslumbrado ao ver a cidade de um modo nunca visto. Ele morava ali havia 35 anos. Quando desceu já passava do meio dia. O parque estava tranquilo. Famílias faziam piquenique nos gramados. Foi uma tarde feliz. Coisa que não sai no jornal. Pena que ele não é de se interessar pelo que acontece na cidade. Não lê jornal.

sexta-feira, agosto 21, 2009

Dias a fio

Manhã respira café
Chaminé acena fumaça
Casa convida papo de varanda

Jardim estaca foices
Calçada desenha avisos
Cadeira balança senhora em tricôs

Infância atravessa cerca
Carro passa longe
Costume ninguém dormir

sexta-feira, agosto 07, 2009

Urbana Ave

Vivo entre estátuas de lã
Carentes de edredons e quenturas
No coração cimentado

Busco migalhas pelos cantos
Onde pneus não lambem
Nem pisam sapatos encardidos

Caminho num vagar de trem chegando
Cuidadoso de olhares e passadas
Que dilatam minha calma insustentável

Percebo todos os movimentos
O esbarro, a correria, o pulo, o aceno
Mas só vejo bem coisas paradas

Desconfio sempre das crianças
Elas costumam parar
E, parando, me distraem dos cuidados

Detesto barulho e chuva
Vassouras e pás são meus infernos
Posso voar, devo agradecer

Não entendo essas pessoas amontoadas
Esculturas encharcadas de pressa
Redemoinhos de pó, buscam ventos

Ontem vi uma menina de asas
Hoje já estava de uniforme
Tenho pena

sexta-feira, julho 24, 2009

Rara leveza

Há uma rara leveza nos pés da bailarina. Mistura de brisa e fúria. De jato e balão. Fuga e permanência. Os contornos da sapatilha delimitam territórios onde os abismos se avizinham com as alturas. Dançar é correr o risco do voo e desdenhar a queda. As sapatilhas são asas colocadas nos pés, desafiando a gravidade em movimentos aéreos. Um voar descontrolado diria alguém preso ao chão. Não. É um voar em planos perfeitos, de mensagens claras escritas como em nuvens, de desenhos no ar, de textos inteiros digitados pelos pés-pincéis da palavra. Anda, dança, corre, pula, salta, troveja, viaja o corpo-alfabeto da bailarina sobre o palco, campo negro pronto a semeaduras. A cada passo da menina feita de plumas, formam-se letras. Pernas em curvas, braços em linhas, tronco em ângulos incomuns. E a cabeça como acento agudo sobre o corpo, um pingo no “i”, quase adorno. Verbos vão sendo construídos de carnes dobradas e torcidas, adornados por figurinos coloridos: pano de fundo, véu que esconde o mistério a ser revelado. Pela sequência de passos-letras, dizeres neblinam o ar. Na sequência de dizeres, há manuscritos feitos pelos pés. No rastro da sapatilha de giz, no quadro-negro do palco fixam-se contos inteiros. As crianças já sabem ler bem antes de irem à escola.

A rara leveza da dança é a rara beleza da criança. Da leitura do mundo pelo olhar de vislumbre. Do olhar o mundo com olhos de avião ou de pássaro inquieto. Do voo, da aventura como necessidade. Uma necessidade solta, insignificante, apenas agasalhada pela seda branca do vento. A rara leveza da dança é feita do mesmo peso dos sonhos. Um peso ligeiro, ágil, livre, inconsciente. Uma leveza da mesma que habita a imaginação, os quartos de sol, as janelas abertas, os cabelos loiros da mulher de vestido xadrez e as borboletas de setembro. Uma leveza de balão com velocidade de jato. A rara leveza da dança é quase som. Não raro, um canto feito só de gestos. E tintas. E olhares. Daí pintura: passeio à beira da colina.

Não há medo nos quadrantes da leveza. O compasso das pernas risca semicírculos breves de calma, entrecortados por saltos de espanto e de grito. Não um grito de temor ou de crime. Grito de cachoeira, espanto sublime. A sapatilha da bailarina é escudo na escuridão. Paredes, palco e plateia são florestas de névoa. A luz só ilumina o escudo, só reflete o corpo de espelhos da menina que veste plumas. Não há nada mais a olhar, não há notas de rodapé, não nem mesmo o horizonte. A rara leveza da dança, da dança em versos dos pés da bailarina, só existe em função da altura. A distância vertical entre a sola do escudo tecido em fios com a lona do tablado. A distância entre o piso e o topo desse tablado. A distância dos olhos até o piso. A altura do voo até os olhos. Há uma rara leveza que flutua o olhar. E qual criança não quer ser nuvem colorida? Ou bolha de sabão?

quarta-feira, julho 22, 2009

Hebdomática

Gripe
Cada resfriado tem a tosse que merece.

Anemia
Têm sangue branco os que promovem a paz? A guerra e o amor são vermelhos.

Diabetes
Evitei tua carne doce. Hoje durmo com árvores.

Faringite
Desde que deixou de falar, anda desdizendo.

Lepra
Os desertos andam lotados ultimamente.

Catapora
Desconheço o que havia a.C. Não achei nada no Google.

Osteoporose
Pai, se o leite é bom para os ossos, porque o queijo suíço é cheio de buracos?

terça-feira, julho 14, 2009

Cinzazul

Clareiamanhã
Tardeatrazer
Ventosopranos
Terramarela
E tantasobrasementes

Raiordinário
Experimentagora
Andaremando
Sobressesoloutrorantigo
Mas aindalvo

E tudo virespasmolfatorelhalmavalanchenzima
Carnestragadartenigma
Olhestefêmeróvulo-mundo
Como correialgemalarmescada-rolante
Tremarimbondoumarapucantesilenciosagorarmada
Vejanela
Ruafora

segunda-feira, junho 29, 2009

Fósforo

40 palitos numa caixa 4x5x1,5cm são as tentativas possíveis.
1 galão de gasolina comum e 2 litros de álcool de cozinha foram depositados ontem à noite atrás do armário onde ela guarda os alimentos.
O texto está com 1,5 parágrafo e já perdi a contagem do número de palavras. Talvez 293. Nas 3 contagens, deu 3 resultados diferentes. Não pode é passar das 400. Será longo e ninguém lerá.
O quarto tem 4x5m. A cozinha tem 7x4m. A sala é quadrada: 5x5m. O banheiro 2x3m. Não tem garagem nem lavanderia. 198 é o número da casa. Coloquei isso no texto. Os jornalistas gostarão desse detalhe.
Ela saiu às 6h22. Tenho só ½ hora.
Vi agora. Ela tirou tudo. Não há cadeiras, nem mesas. A escada fica lá fora, num rancho. Tem 7 degraus. A porta ficou fechada. Não alcanço a caixa com os palitos. Vou planejar melhor para amanhã. Estarei crescido também.
“Efetue as somas abaixo:”
Odeio tarefas da escola. Vou recontar as palavras. Vou assinar com meu nome completo. Quanto estou medindo?

sábado, junho 13, 2009

Ontem

Há um amor sem sol e sem lua
Um amor que não rima, nem beija, nem promete.

Um amor desavisado
Avesso de desejos, encruzilhado numa rua de chão.

Um amor desgrudado da metáfora
Não contido em corações vermelhos atravessados por flechas inflamadas.

Há um amor sem cor e sem som
Um amor pra ser não visto, um amor não-poema, não-música.

Um amor estúpido de sorriso
De boca trêmula, pernas altas.

Um amor de pedra jogada no rio
Apenas um lance na água eterna, sem registro em fotos.

Há um amor sem jeito e sem querer
Um amor de roupa enlameada, descalço, que não caminha à noite

Um amor sem rosto, sem modos à mesa
Devora os dias como gafanhotos em plantação.

Um amor miserável, quase um ódio branco
Quase um desenho de criança, um abismo, uma fazenda sem cerca.

Há esse amor. Sem nome. Sem endereço.
Um andarilho. Porco, mendigo, analfabeto.
Feito de fome, sede e inverno.
Procure nos lugares vazios.
Ermo de gentes.
Está lá. Ontem estava.

[jb]

terça-feira, junho 02, 2009

Entenda o mundo

DA ESPECULAÇÃO FINANCEIRA

Especular é o verbo regulador do modus operandi no mundo contemporâneo, condenado ao eufemismo da exiguidade. O quociente da operação onde imperam o superávit primário e o déficit embrionário representa uma cifra avessa ao equilíbrio de monetização e à interferência dos agentes de referência dos estados nacionais. Especular está dialogicamente ligado a uma postura de indexar à existência uma não-existência, a qual só é possível nos trópicos das linhas imaginárias. O comportamento do dinheiro, na sua forma real, isto é, lastreado pela produção de riqueza pelo beneficiamento da matéria-prima dos recursos naturais, é análogo à ingerência dos estados nacionais e mercados financeiros transnacionais, inclusive totalmente fora do arcabouço de princípios teóricos das agências especuladoras mundiais. Conforme o reconhecido economista alemão Aston Burler, a supremacia da especulação não acaba com o “reinado do dinheiro vivo”. “O dinheiro vivo não morreu”, disse numa entrevista. E não deve morrer, pois as pessoas ainda pagam o cachorro-quente da esquina com moedinhas. A teoria do “dinheiro invisível”, postulada por Burler, mecaniza um atributo estritamente relacionado à gestão corporativa de bancos, financeiras e organismos afins, e que não dialoga com a economia cotidiana dos hot dogs. O ideal idealizado está longe do real vivido, portanto, há necessidade de construir pontos de ligação mais visíveis e práticos do que teoremas de especialistas. O protecionismo das taxas cambiais e dos operadores de crédito deve desaparecer com a presença de uma legislação mais efetiva, e isso não significa necessariamente menos tributos ou encargos. Deve, aliás, representar mais impostos, até a autofagia dos sistemas fiscais dos estados nacionais. A morte do Estado determina a vitória da especulação. A vitória da especulação nos avisa que os personagens dos quadrinhos eram reais. Nós que éramos os rabiscos do mundo.

[jb]

sexta-feira, maio 22, 2009

Pedinte

Respingue em mim teu beijo feito de ácido e flores
Me alimente com as sobras salinas de tuas palavras
Me cubra com céu estrelado de tua pele asfáltica
Deixe uma gota d’água pra mim na tua boca de oásis
Me dê um canto na tua casa iluminada
Me faça mendigo em tuas esquinas sem semáforos

Sou homem sem varandas
Sou apenas construção

[jb]

quarta-feira, maio 06, 2009

Bobo


Te tendo, tudo é resto
Nada é mais
E viveria sem reclamar
Só dos teus restos meridionais


Dos teus restos de cheiro
Dos teus restos de vinho
Dos teus restos de muitos
Dos teus restos sozinhos


Dos teus restos de ciúmes
Dos teus restos de dinheiro
Dos teus restos de pedaços
Dos teus restos inteiros


Dos teus restos de cama
Dos teus restos de jardim
Dos teus restos de paz
Dos teus restos ruins


Dos teus restos de riso
Dos teus restos de fado
Dos teus restos de sol
Dos teus restos molhados


Te tendo, tudo é resto
E mais nada
E viveria sem reclamar
Só dos teus restos de madrugada


Te tendo, tudo é resto
Nada mais é
E viveria sem reclamar
Só dos teus restos de mulher


Te tendo, tudo é resto
E teu resto é prato fundo

Não me deixe comer
Só dos restos do mundo

[jb]

segunda-feira, abril 27, 2009

Escritos enrolados

desgraçado

Desfez o acordo
Desdisse o dito
E desculpou-se
Pela desfeita.
::

cálcio

moço,
o osso
não tem
caroço.
::

Atendimento

Outrora
É uma hora outra
Que não agora
Quem entrou, ri
Quem não, chora
E quem ainda vive
Aguarde lá fora
Por ora era isso
O outro, por favor.
::

[jb]

quarta-feira, abril 15, 2009

Véspera da noite

Na varanda
Corre um vento morno
Tão leve
Tão azul
Não estranho

Quero-quero
João-de-barro
Gaivota
Tudo dormiria sonâmbulo
Sem as aves empenadas de poemas
Tudo respiraria azulejo
Sem as sombras voantes no varal

A estrada estreita só leva
Deixou de trazer
Levou os desenhos
Os carrinhos de madeira
O quebra-cabeças incompleto

Levou todos para trás da montanha
Se alguém viesse
Veria apenas a varanda
Sentiria o vento
Ouviria barulho de asas
Passaria

Se alguém viesse
Seria tudo
Tão estranho
Desazul

[jb]

sexta-feira, abril 10, 2009

Reparos

colocaram telhas na noite
manhã nasceu sem orvalho
tarde morreu com sede

as melhores chuvas caem de madrugada
quando estamos tão encharcados de vésperas
que até esquecemos de cobrir o espelho

[jb]

sexta-feira, março 27, 2009

Cor(re)lógio

Cara de agenda
Pés de compasso
E a pressa verde-semáforo

Caminha na faixa
Na direção das 16:30
De roupa branca-médico

Arrastam-se no asfalto
Atrasos de relógios diferentes
Em tom vermelho-comunista

Persegue o horário
Tropeça, cai, levanta: risos
Vê o céu azul-semgraça

Sob o vidro riscado
Ponteiros riscam a hora
O desespero é sem cor, mas amarelo

[jb]

segunda-feira, março 09, 2009

Dois sentidos. Um medo.

Havia certa displicência no olhar. Janelava um desinteresse sorrateiro, dissimulado, escandinavo, canino. Não, não era um olhar quente, de fogo, incêndio, combustão. Era um olhar de potência: inflamável, tenso, derradeiro. Um olhar em brasa. Brasa escondendo labaredas dentro. E tinha a pele. Lençol cobrindo a cama bem arrumada. A pele era parede branca, caiada, com aqueles carunchos esmaltados pelo tempo. Havia certa displicência na pele também. Mas uma displicência fria. Uma frieza dura, rugosa, aterradora. Ainda assim, havia certa beleza nessa pele. Sim, aquela beleza de cerca coberta de neve, de lago congelado, de floresta boreal. O gelo é a única coisa tão fascinante como o fogo. O gelo é um fogo sem chamas. E ali, sobre a cama, a pele recebia o fogo-brasa dos olhos. Os olhos inflamáveis derretiam com a pele ártica. As mãos tateavam a frieza da pele. Os olhos de fogo vigiavam o mover das mãos. Parecia, ao menos. Elas tentavam o redescobrir da pele. As montanhas de verão, os passeios de inverno, o florescer de setembro, o nublado alegre de abril. Os toques, as distâncias, as esperas, as surpresas, os convites, as graças. Tudo escrito agora, ali, na pele. Pegadas na neve. As mãos não tocaram os olhos: esquentava. Os olhos abertos, em vulcão. Estranhos. Não haviam visto de tudo. Viram o bastante. Viram uma tarde em que a cegonheira trazia carros à cidade. Achava que as pessoas chegavam assim ao mundo também. Viram as risadas na sorveteria. As conversas no banco da escola. O céu que parecia enraizar-se atrás da serra. Não, não. Eles não viram o bastante. Por isso o desinteresse. É uma espécie de vingança velada, feita de raiva, veneno e faísca. Pelo mar não visto. Pela data que não o esperou. O dia negado, o beijo negado, o poema negado. Os olhos resignam-se em fechar. E sobre a pele cai mais neve. Panos brancos nos móveis novos. A casa inédita, fechada. As mãos acenam. Um aceno difícil, eterno. Displicente. O engano tem cinco dedos e teme tudo o que queima.

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Entenda o mundo

DA SOCIABILIDADE PAROXÍSTICA

Viver em grupo demanda uma catarse de sentimentos e habilidades diretamente convencionais a determinada conjuntura de valores. O agente humano, como elemento social ativo, não pode prescindir, na aventura humana da interdependência mútua, do componente incisivo da atuação, modificação e ingerência, próprio de qualquer ecossistema coletivo dotado de saliências idiossincráticas. O indivíduo, instrumentalizado pelos instintos e pelas convenções, compõe uma cadeia sistemática, notadamente arbitrária e cíclica, condicionante a certo desvio epistemológico onde a soma do conhecimento histórico não resulta, necessariamente, numa totalidade. O meio social é o conjunto de ações de suas partes mais o próprio processo do qual resulta tal conjunto, de maneira que as interações sejam cumulativas, mas não no sentido de “empilhamento” e sim na concepção da costura rizomática das múltiplas relações sociais. A experiência humana não prescinde a natureza do ser. O “ser” é a resultante de identidades específicas, únicas, intransferíveis em confronto com o “outro”. O denominador social desse confronto é a experiência. E a experiência, tanto a individual como a coletiva, é antitética por excelência. É por esses fatores próprios do humano que você odeia aquele vizinho que, displicentemente, emite sons e ruídos fractais altissonantes. Isto é, aquele filho da puta barulhento do caralho, conforme a nomenclatura de palavras torpes normalmente aceitável na sociedade moderna.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Impermeável

Asfalto, concreto, piso, betume, calçada, laje, cimento. Nada disso combina com esta cidade que chora chuva, respira umidade e tem o corpo encharcado. A água não consegue mais respirar. Não se infiltra, não se esconde nos tubos, não se aninha em seus lençóis. Ela não dorme, faz vigília o tempo todo sob céu estrelado ou de nuvens carregadas. As águas das torneiras, das chuvas e dos esgotos correm sobre dutos cimentados e entupidos, sobre o asfalto-lâmina que racha-se quando os líquidos tentam penetrar sua pele de piche. Na beirada da casa, o desaguar molhado de pingos bate em pisos intransponíveis. Ele tenta fugir, escorrer, deslizar: não encontra desaguadouro, drenagem, ralo. Revoltado, forma poças e alagamentos. Águas empoçadas esperam com rasa paciência o sol: tornar a ser vapor e subir aos braços inquietos de cúmulos-nimbos.

O cidadão líquido gosta de água. Mineral, potável, de coco, que-passarinho-não-bebe, gelada, do rio, do mar, da piscina, dos olhos. Odeia porém, um tipo de água: a água que voa, a água vertical, a água que deságua, a água-chuva-que-Deus-dá. Odeia tanto que faz tanques, barreiras e misturas químicas que impedem o mergulho da água no solo-esponja da cidade. Muitos habitantes molhados lacraram o chão onde pisam como cofres de zinco. Jogaram as chaves no mar e já esqueceram a combinação para abrir. A água que cai do céu não é bem recebida em sua própria terra. Ela faz vingança aguada à falta de zelo do homem impermeável: invade casas pelas portas, janelas e outros buracos.

Há água sobre o asfalto e não é miragem. Há poças nas calçadas recém assentadas, há pingos aglomerados esperando ônibus nos terminais, há águas reticentes no centro alagado e nos cantos mofados da cidade. A praça com espelho d´água virou chão cinza-cimento. Jardins e gramados viraram pisos decorados com desenhos de flores que não fazem fotossíntese nem bebem água. Chuvisco, garoa ou chuvarada estão impedidas de entrar nas artérias da terra: hemorragiam-se todos os dias, chova ou faça sol. As águas das chuvas e dos rios reclamam seus ciclos, caminhos, bueiros e saídas. Querem correr as correntezas e quedas que lhes são próprias. Obstruída, água parada é morte, sujeira e medo. O limo no muro, nas trincas dos paralelepípedos e nas rachaduras da parede são avisos da resistência aquática. A água derramada quer apenas ser água, deixar-se levar pelos poros do chão, entrar no casulo da terra e metamorfosear-se em novas nuvens, novas chuvas e novos rios em verões do por vir.

Calhas, encanamentos, tubulações, conexões, drenagens, sulcos e escoadouros são palcos perfeitos para os movimentos dançantes das águas e o respirar altivo da terra. As águas precisam ser livres para que todos possam andar pelas ruas sem precisar vestir aquele desconfortável escafandro.

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Confecções

Respirava a angústia torta.
Sinos de Belém em abalos e badalos
Na catedral dAquele que tudo vê

Transfigurado em preces & soluços
Mordiscava o ar com palavras insalubres
Malabarismos de corpo
Saliva em nó
Petições plagiadas de profetas

Portas fecharam-se, desonradas
Janelas em estalos: cegavam-se
Tijolos transpiravam poeira & pólvora

Há ruína quando chora-se.
Dentro.
Tal qual tanques suando bombas.
Fora.

E toda ruína traz no bolso um lenço branco.
Nunca se sabe.
Nunca se calculou o ângulo de um corpo ajoelhado.

[jb]

terça-feira, janeiro 13, 2009

Hebdomática

Água
Se o olho d´água chora não vemos as lágrimas.

Terra
Apenas cegos cultivam abrolhos.

Ar
Morrer é de perder o fôlego!

Fogo
Viver é incendiar-se. Mas não nascemos fênix todos os dias.

Gelo
Nenhuma água congelada ficará impune no tribunal das rochas.

Vento
Ele assovia para ela. A tempestade chove apaixonada.

Sal
Por recomendação médica, os canibais aderiram à comida insossa.

[jb]

domingo, janeiro 04, 2009

Prêmio Dardos

Recebi do ilustre colega de palavras Borges de Garuva o selo do Prêmio Dardos. Vindo de quem veio não poderia recusar.
Conforme texto que circula junto com o selo, "com o Prêmio Dardos se reconhece os valores que cada blogueiro mostra cada dia em seu empenho por transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais etc., que, em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras". A idéia é promover o intercâmbio entre blogueiros através do reconhecimento de suas contribuições à blogosfera e à Web.

De acordo com o script, quem recebe o prêmio deve seguir estas orientações:
a) exibir o selo do prêmio;
b) criar vínculo para o blog do qual recebeu o prêmio;
c) escolher outros 15 blogs a serem premiados.

Vou quebrar o protocolo e citar só alguns. Os links ao lado já definem por si só a minha lista premiada de leituras e visitas frequentes.

* Legendas & Etcaetera, do além-mar CSA.
* Notas Mínimas, da Katherine Funke.
* A Garota Distraída: Vanessa Bencz.
* Caixa de Hai Kai, do Seabra.
* SpaceMelato, do "manezinho" Fabiano Melato.
* No Mundo da Lua News, o blog do Divino.

[jb]

sábado, janeiro 03, 2009

Encontro Silábico

Esperava com olhar circunflexo
Na fala, a voz aguda perguntava as horas
Tinha um cheiro tônico (dos que vivem perto das florestas)
E seu ouvido oxítono captava até meu sussurro
Minhas palavras foram sem ênfase
As dela bastante acentuadas
Despedi-me com um hiato
Ela, com um toque diferencial:
a mão direita reticente sobre o meu ombro analfabeto
Fiquei com o rosto craseado
enquanto meu olhar hifenizava o gesto de separação
Entrei no coletivo
Ela, singular, permaneceu no ponto
Tomei assento
Ri o riso minúsculo das vogais fechadas
Senti-me quase-verbo

Ela tinha a pele ortográfica
As pernas intransitivas
Os cabelos conjugados com os olhos

Eu, sujeito de entrelinhas
Ela, pronome reto
parágrafo único
minha oração nos domingos sem palavras

[jb]
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