terça-feira, dezembro 30, 2008

Penúltima

fez gargarejo com fogo
deixou a pasta de dente aberta
a torneira gotejando
os dentes polidos na boca de vulcão

decorou os cílios
as mãos com creme faiscaram o pescoço
havia digitais no espelho
os cabelos alisados respingaram lava no azulejo

luzes apagadas
porta apenas encostada
quarto com os lençóis de ontem
a lareira com brasas envergonhadas

o sapato prata riscou o asfalto feito fósforo
ela, toda luz, alastrava o incêndio pelas ruas
faróis, velas, lâmpadas, luzinhas de Natal:
tudo se apagou em respeito à iluminura de vestido púrpura

era de ferver os olhos
antes, mata virgem
hoje, queimada para plantação
depois, mulher destilada

raiou a noite inteira até veludar a manhã

[jb]

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Playground

Sem outrora nem agora
Sem clarão nem abismo
Sem metades nem vazios
Só o ermo:
Agreste alegre do Sem Fim

Sem torres nem escadas
Cruzamentos nem buzinas
Vozes apenas sussurros-respingos
O campo vasto
A aragem solitária
(sem borboletas)
O passo descalço do Sem Fim

Bolha de sabão
Pipa
Escorregador
Pião
Pequena roda-gigante
Figurinhas de chicletes
Pôquer
O Sem Fim brinca com coisa séria
O Diferente foi quem brincou com fogo: se queimou
Não entra mais no parque

Uma faísca beijou uma bolha no ar
Big Bang dizem os siderais
Imbecis:
O Sem Fim só sacudiu a poeira
Começar tudo de novo
Entende-se:
O Sem Fim é o Dono da Bola

E houve tarde e manhã: o primeiro dia
E quem não quiser não vai ganhar calendário

[jb]

domingo, novembro 23, 2008

Simples

Sorriso atômico
Olhar pragmático
Beijo:tato

Idéia mímica
Abalo sísmico
Toque:contato

Lance único
Forma trágica
Morte:ato

[jb]

sábado, outubro 25, 2008

O homem da casa tem uma caixa
















O homem da casa tem uma caixa feita em paredes de azul sangue.
Num trapézio retângulo, porque esta é a forma da caixa quanto vazia de suas vértebras, de cor preta quase querendo ser colorido, a vida arqueja em esquinas de muitos ângulos. Daí o retângulo convencional, porque esta é a forma da caixa quando vertebralmente cheia. E daí muitos outros polígonos: triângulos, quadriláteros, cones, pirâmides, estalactites e demais geometrias acesas de arestas ósseas circunferenciando em coices o medo, a palavra, o menino, a árvore, a carne masculina, o feminino adentro, o corponudez do imaginar e do(r) sentir. Digo em coices, sim, porém amorosos.
Nós – os não adestrados – ainda não aprendemos o carinho do fogo, nem o afago do gelo. Adoramos a chuva caindo oblíqua; mas amamos ficar na varanda: somos domésticos: vasos. Ao buscar a tangente, o outro tropeça-me.
Grito o grito do Cristo – Pai lavra-nos (o Filho mais eu).
O homem da casa tem uma caixa. Um cubo-imagens. Um porta-poemas. Porta-sonhos. Porta-portas, janelas e outras fugas. Eu entrei e fugi. Fugi e não me desesperei: ri o riso bíblico de Abraão: Isaque pôde brincar sua infância com letras e desenhos.

[jb]

Saiba mais sobre a caixa.

A terceira margem do rio

Um filme de Tereza Moura sobre a obra de Guimarães Rosa: belo trabalho.

sábado, outubro 11, 2008

Criança pulando o muro

O musgo encobre a vista do tijolo
O gato já está na outra ponta
O vizinho abre a janela: olha pro lado errado
A sandália ímpar perde-se no quintal
A árvore brinca com fios cortados

No céu: nave-mãe amamenta o azul

[jb]

segunda-feira, setembro 29, 2008

Entremanhã

Entretanto
Há tantas manhãs
Entre as noites
Que ela esquece de entreter-se:
ter-se a si mesmo nas entrelinhas das horas

Entreato
Ata e desata,
E entre um dizer e outro
Desanda entre cantos sem sol

Entrementes
Ela quer somente a parte
Que lhe escapa entrededos

[jb]

sábado, setembro 13, 2008

a chuva não cai consoante tuas vogais

Asfalto
Betume
Concreto
Dique
Esteio
Forro
Gesso
Hímen
Isopor
Jazido
Kafka
Lâmina
Muro
Nódoa
Osso
Parede
Quartzo
Rocha
Solda
Túmulo
Útero
Viga
Winchester
Xisto
Yin-Yang
Zinco

[jb]

segunda-feira, setembro 01, 2008

Rótulo

Ele traz um pote nas mãos.
Um pote de vidro.
Está fechado.

Deposita sobre o armário.
Sobre uma das prateleiras do armário.
Na cozinha.

O pote está entre outros dois.
Um é Branco
Outro Vermelho
Havia um Azul: foi roubado.

Há uma inscrição nos potes.
Uma inscrição que ele mesmo escreveu:
Manter fora do alcance das crianças.

Ele pega um pote vazio e sai.
Sai para se manter ocupado.
O dia inteiro fora.

Ela chega.
Ela sempre chega.
Ela que roubou a Liberdade.

Vê o pote novo.
O Medo está num vidro de conserva.
Enquanto cacos dançam no chão.
Passos de sangue fogem.

Ela foi embora.
Nunca mais roubou.
Nunca mais voltou a ser criança.

Ele volta.
Volta com o pote cheio.
A Vingança num copo de requeijão.

[jb]

quarta-feira, agosto 27, 2008

Notícias Anônimas

Galo é atropelado ao tentar pegar carona

Na madrugada desta segunda-feira, 25, às 5h50, um galo do tipo índio foi atropelado por um veículo camioneta Bandeirantes, placa AMB 1515, de Diamantina, quando tentava pegar carona às margens da rodovia do Milho, próximo da Lagoa Kasulke. A ave madrugadeira não pode nem fazer o último canto, pois morreu imediatamente ao choque. Conforme perícia policial, penas da vítima espalhadas no asfalto indicam que o galo estava praticamente no meio pista. O motorista da camioneta, Orlando Pereira, 36, afirmou que vinha em velocidade compatível mas não percebeu a ave e não teve tempo de frear. Arrastou a vítima por quinze metros e parou fora da pista, perto de um barranco. Familiares estão indignados pela rodovia não ter acostamento em toda sua extensão, motivo de diversos acidentes fatais há anos. Ainda segundo a polícia, o local é impróprio à travessia e recomenda o uso da faixa de segurança nos locais sinalizados.


Lotada, casinha de correios deixa cartas caírem no chão

São 35 cartas, três revistas, 14 encartes promocionais e inúmeros panfletos de propaganda política. Todos abarrotando a caixa de correios número 233, da rua Magnólia, bairro Duque de Caxias, em Guarapiranga (SP). O destinatário das correspondências, que mora sozinho no endereço, está ausente há 32 dias por motivo desconhecido, conforme falaram os vizinhos. Com o acúmulo de cartas e os novos documentos que chegam diariamente, os papéis caem pela parte traseira da caixinha, desprovida de tranca, e se empilham sobre a grama alta. O vento espalha tudo pelo jardim da casa e leva muitos panfletos políticos (pequenos e leves) para as calçadas e varandas do outros moradores. A equipe dos correios local informou que não vai deixar de fazer a entrega das correspondências porque é seu dever fazê-lo, independente das circunstâncias. Nenhuma carta foi aberta à revelia do morador, apesar de algumas estarem rasgadas por roedores. A cortina da janela da sala mostra-se entreaberta. Os vizinhos ainda vão esperar uma semana, quando então devem informar a polícia sobre a situação.


Tempo quente faz tinta de pichação secar mais rápido

Os 42 graus de temperatura desta terça-feira, 26, com a sensação de mais de 50, fizeram as pichações no muro da rua XV secarem mais rápido. Os desenhos obscenos e anárquicos feitos no início da manhã já estavam totalmente secos às 9h30, de acordo com a Guarda Municipal. Na opinião do técnico químico Juarez Andrade (curiosamente um ex-pichador), 39, os pichadores atuais também usam um novo tipo de spray esmaltado de secagem rápida e de difícil remoção. Associado ao calor destes dias, a preocupação é em dobro para as autoridades e para os proprietários dos prédios “carimbados”. Osmar de Souza, 42, dono de uma loja, já pintou o muro de seu estabelecimento sete vezes. Agora desistiu, logo que percebeu que não adianta competir com grafiteiros. Análise do Instituto da Tinta comprova que as novas pichações secam em menos de três horas. As altas temperaturas contribuem para que os pigmentos penetrem na superfície. Quanto mais recebem calor, mais escuros e impregnados ficam. A prefeitura pretende adotar novos procedimentos para ao menos amenizar o índice de pichações na cidade.

sexta-feira, agosto 01, 2008

Aprendiz

(O corpo aprende o Verbo)

A engenharia dos joelhos
Precede a arquitetura da perna

A arquitetura da perna
Domina o direito dos pés

O direito dos pés
Subordina-se a ortografia dos ossos

A ortografia dos ossos
Regula a oratória das vértebras

A oratória das vértebras
Formata o design do pescoço

O design do pescoço
Combina-se à agronomia da clavícula

A agronomia da clavícula
Protege a oceanografia do suor

A oceanografia do suor
Ignora a gastronomia do estômago

A gastronomia do estômago
Incentiva a enologia do fígado

(O corpo não disciplina-se)

A enologia do fígado
Embriaga a medicina do vômito

A medicina do vômito
Advoga a agrimensura das mãos

A agrimensura das mãos
Perturba a geometria dos dentes

A geometria do dentes
Acomoda-se com a astronomia dos olhos

A astronomia dos olhos
Aproxima a literatura das lágrimas

A literatura das lágrimas
Romanceia a matemática dos dedos

A matemática dos dedos
Explora a geografia do sexo

A geografia do sexo
Humaniza a estética da culpa

A estética da culpa
Destila-se na psicologia da pele.

A psicologia da pele
Debita a pedagogia do corpo

(O corpo não faz vestibular)

[jb]

sábado, julho 05, 2008

Hebdomática

Madonna
A boca canta o que o coração pulsa.

Marilyn Monroe
Dada certa circunstância, o melhor lugar do mundo é o bueiro.

Cleópatra
A primeira rua do mundo não cruzava com ninguém.

Ester
Só os fracos clamam por justiça.

Capitu
O rio deseja ser mar. O mar, rio.

Joana D´Arc
De que cor é a fumaça do sangue que queima no fogo?

Elizabeth
O jacaré dorme de olhos abertos em noite azul.

[jb]

domingo, junho 15, 2008

Ferrovia

Cochila nos dormentes o hábito sonâmbulo.
Viver é voltar.
Um vagar-vagabundo.
Uma espera inútil por locomotivas sem horários.

Em tempos modernos só há confiança em pés vacilantes.
Tudo que é preciso já está escrito em seu caderninho de anotações.

Um trem respira aqui dentro.
Estou louco.
Movido.




















[jb]

sábado, maio 17, 2008

Ultravioleta

Púrpura nas ruas. Nas blusas, saias, vestidos, bolsas e demais acessórios. Delas. Femininos. São elas que fazem a moda, tão efêmera e inconstante quanto o temperamento delas domingo de manhã (ou sábado à tarde ou segunda-feira o dia todo). São elas que dão o tom. Que definem a cor da cortina do cotidiano e das noites desavisadas. Púrpura nas ruas. Nos entroncamentos. Nas pinturas. Nas curvas. Das mulheres.

De repente todas decidiram que o roxo (palavra demasiadamente masculina para uma cor de espírito sensível) seria o tom do momento. Por acaso, todas assistiram a mesma novela, viram o mesmo filme e leram (leram?) a mesma revista. Ou será que todas viram “A Cor Púrpura”, ou aquele filme (filme?) com a Milla Jovovich, e tiraram dali a referência para a paisagem monocromática de seus guarda-roupas? O certo é que, cansadas do vermelho-pecado, do azul-neón e do pretinho básico, elas decidiram, de alguma forma, sem prévia combinação, com num concílio desconhecido de instintos, dar visibilidade a trama púrpura que contracena com o cinza das ruas e com o branco das casas.

Púrpura, roxo, violeta. Tecnicamente, nada iguais. Nem cores são. Nascem de cores primárias, fruto de misturas bem calibradas. A diferença é sutil. São tons diferentes de uma mesma voz. Um voz que grita neutralidade, chora melancolia e soluça avidez. Tecnicamente, cada nuance orquestra sua própria sinfonia. Aos ouvidos de um chato das gráficas, a diferença é gritante, um ruído realmente incômodo. Mas aos olhos comuns, das retinas multicoloridas (muitas artificiais, diga-se) que cruzam a rua do Príncipe com a Nove de Março, a sutileza é nula. Uma música monótona e sem quebra. Mistura bagunçada com a palidez de placas, letreiros, paredes e humores. Ignora-se aqui, portanto, os tons, semitons, entretons e ruídos bemóis zunindo nas ruas. A olho nu, o que se vê é a combinação caótica entre o azul e o vermelho, ou ciano e magenta, como diria o chato da gráfica.

Roxo é nome informal, masculino. Lembra violência: agride. Violeta leva à rima pobre e vulgar, como o rio que corre para o mar. Púrpura não tem rima fácil, tem algo de divino, elevado, inatingível. Poesia, em suma. Feminilidade, na essência. É difícil a combinação para se chegar à púrpura. Da mesma maneira que é difícil a mulher combinar a roupa ideal para aquela festa, ou mesmo para ir ao mercado. Púrpura no corpo dela sugere a tentativa de fugir ao comum, ao usual. Uma ousadia e um esforço a mais para ser diferente. É a busca pela exclusividade, tal qual aquelas cores identificadas somente pelo número. E números não se repetem, sabe-se. Tal ousadia, socializada e replicada nas ruas, vulgariza-se. Entorna a visão. Pigmenta em marrom qualquer contraste. Não faz diferença, assim como a tinta branca que cai sobre o lençol idem. Poesia, pobreza ou informalidade, não importa. Esta cor-trindade não se encaixa muito bem nas convenções. Ao olhar de cima, Deus vê as mulheres púrpuras como jambolão caído do pé.

Elas estão em busca da cor invisível, da cor sublime. Da cor que ultrapasse a escala limitada e já sem graça do arco-íris. No encalço do ultravioleta, buscam a transparência da segunda pele, esperando perder a opacidade dos olhares alheios. Levam ao exterior a frieza de dentro. Tomam a decisão de estar ali: no limite entre o que aparentam e o que realmente são. O adorno violeta abre um portal para o reino onde cor, luz e som não são apenas três palavras feitas de três letras, mas três tempos de um mesmo ente: o jogo. O jogo das intenções, das combinações, dos números e das palavras, das necessidades, dos desejos, das possibilidades. O jogo dos traços, das nuances e dos ritmos. Um jogo onde o corpo é, ao mesmo tempo, das luzes, o espectro, das cores, a paleta e dos sons, a partitura. E elas querem quebrar o jogo e suas regras. Apagar as linhas, as marcações, os critérios. Ser, elas mesmas, o jogo, a regra e sua contravenção. Entrar, elas mesmas, numa terra sem hierarquias. Romper, elas mesmas, o quadrante de qualquer sentido.

O roxo é uma indefinição. Nem uma cor, nem outra. Um não-lugar. Um desespero. Uma febre. Um convite. Um “oi” sem compromisso. Atrás de uma simples camisa berinjela ou um longo vestido uva, está aquilo que não tem cor, é silencioso e é, por si só, iluminado. Está o ultravioleta, o além-roxo, o pós-púrpura. O indizível. O enigma atrás das cores, olhares e movimentos. A exata diferença matemática entre o que vemos, o que sentimos e o que imaginamos. E é daí que partem os sonhos. (Aqueles nunca lembrados após o amanhecer). E daí, o jogo começa.

Agita-se, enfim, o cego pincel. Misturas infinitas denunciam o quanto ainda há de branco debaixo do Sol. O quanto as ruas ainda são convencionais. O quanto as mulheres deveriam ser sextas-feiras.

[jb]

sábado, abril 19, 2008

Imago

- para Luciane

Em asas coloridas, o mosaico dos sentidos
O peso do mundo no balé de duas lâminas suaves:
dobradiças de leveza
movimentam o ar
tiram o fôlego
atraem a inquietude de olhares alheios
- contraste ao concreto humano

Ela sofreu mudanças:
Caminhavagoravoa
Por um vento hábil
(daqueles que esculpem rochedos)
eternizou-se na pele da mulher:
desenho em pedra na pele clara
Agora leva no pescoço o relevo da serena idade
- peso camuflado pela cortina dos cabelos: cachoeira

A imagem é uma varanda:
vê-se o horizonte em qualquer dia
(visão comparável ao olhar-espelho da criança)
A pintura no tecido feminino sugere um lençol colorido sobre a cama
À superfície, um selo
Carne adentro, a tinta faz um portal
poliniza o sangue
faz da alma um caleidoscópio perfeito

Difícil imaginar o vale por trás da transparência
Fácil se perder em traços riscados de dor e cor
A agulha que feriu a seda, já feriu mármores
A pena que escreve imagos, já rabiscou dragões
Só o olho
(antes apenas véu)
agora vôo

(só o tempo realça a própria sutileza)

[jb]

Aviso ao oleiro

Um dia sem nexo
delira na sombra
do espírito inquieto

A fagulha do tempo presa no canto do olho
o ponteiro parou sua escalada às 2:50

O sol nunca toma café-da-manhã
enquanto o paladar do homem
só sente a anarquia dos sonhos

Na língua, a palavra cega
Na boca, a desordem das lágrimas
(luzes em cacos de porcelana)

[jb]

sábado, março 08, 2008

Ver(ter)

Infiltração.
Vazamento.
Desperdício.
Escorrimento.
Fissura.

Pinga no mármore
Molha o lenço
Encharca a roupa suja
Desliza o suor do azulejo

No sofá,
o corpo goteja
a alma impermeabilizada
o espírito irrompe-se

Fora,
uma placa de dizeres líquidos:
Compro betume. Pago à vista.

[jb]

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Gravidade Zero

Negaram-lhe as aventuras no Sol
Negaram-lhe os passeios de domingos no jardim das galáxias
Negaram-lhe o desafio de amarelinha com uma supernova

Que coisas pequenas poderia desejar quando crescesse?
um cometa no jardim
uma nave sobre a estante da sala
nada de lâmpadas no quarto: estrelas de longe

O que ela mais queria, sabemos,
(dizia à todos)
fazer universos com bolhas de sabão.

(e ela sempre foi assim, transparente)
(eles, opacos)

[jb]

domingo, fevereiro 17, 2008

Procuro um amor que me ensine a jogar cartas

Me embaralho no amor. Não aprendi a arquitetura dos naipes que, em seqüências, pares, ordens e conjuntos, metaforizam as coisas do coração. Não entendo de reis, rainhas, duques e damas. Eu sou plebeu e, pretensioso, procuro uma princesa, mesmo sem castelo, mesmo sem reino. Apenas com a capacidade de me ensinar os jogos palacianos. Eu estou disposto: sou paciente.

Não sei das regras. Acho até que tenho o curinga nas mãos mas não sei utilizá-lo. Por que não ensinam isso nas escolas? Minha professora de Física jogava truco durante as aulas. Eu, querendo entender apenas o mundo das partículas, perdi a oportunidade. Antes fosse uma disciplina regular: Truco. Ficava apenas como observador e comentarista de algo que não tinha a menor lógica para mim. Foi divertido, ao menos, mas não aprendi direito nem uma coisa nem outra.

O baralho é um mosaico de enigmas. Eu sei o que cada um representa isoladamente. Os problemas são as combinações, os critérios, as misturas, as exceções às regras. Daí eu me perco, desentendo: são muitos jogos possíveis com as mesmas cartas. Eu não gosto de fazer escolhas. Daí eu tranco o jogo. Sou punido. O Amor não me convida para jogar. Fico no backstage. Quando retorno, me exponho ao ridículo. Dou a entender que tenho cartas na manga e, por isso, muitos me respeitam. A qualquer momento eu posso decifrar a matemática aleatória das cartas e conhecer o privilégio de amar sem segredos. Minha malandragem, porém, ainda é muito primitiva. Sou um amador, reconheço, um aprendiz, um neófito, um discípulo, um aspirante à Corte. Em outras palavras, um fraco. Alguém pode abrir os portões para mim?

Cresci nas vizinhanças de um bar. Ali, nas vizinhanças, fiz amigos e amigas. Aprendi a andar de bicicleta. Briguei, brinquei e trabalhei. Ali, no bar, aprendi a jogar dominó, bocha, jogos de tabuleiro, sinuca, pimbolim, videogame. Aprendi até a cantar, ao som de um violão, numa roda de bêbados emergentes. Ali experimentei cigarro, e não gostei. Cerveja, idem. Drogas, nem morto. Por aquelas redondezas encontrei as primeiras loiras da minha vida. (A primeira a gente nunca esquece!). Mesmo neste ambiente propício ao vício, eu jogava entre o puro e o profano. E, mostrando minhas cartas, perdia facilmente. Nunca fiz um Royal Straight Flush (se é que me entendem), nem no amor, nem na vida e, é claro, nem muito menos no pôquer. O que não tenho é muito valioso para correr o risco de perder...

Não adquiri o espírito malandro dos bons e velhos jogadores, forjado nos recônditos esfumaçados dos bares, macerado pelo gosto vulgar das bebidas baratas e estigmatizado em palavras ofensivas. Eu pago caro, mas não aceito o lixo. O amor não é banal. O sexo não é banal. A mulher não é banal. Está aí uma trindade sagrada (me perdoem o pleonasmo). Ou seria um trinca? (O trocadilho foi bom, admita!). Sou exigente e por isso estou só. Eu jogo respeitando tanto o adversário que desejo que ele vença. Este é um princípio que deveria abandonar. Na verdade, não jogo: faço anti-jogo. Jogar não admite solidariedade. Jogar é uma trapaça, um engano, uma engenharia de contravenções estamentadas pela obsessão. Deus, inventor do Amor, jogava cartas muito bem.

Procuro um amor que me ensine a jogar cartas. Não estou blefando. Não estou pifado. As cartas estão na mesa. O espírito, desarmado. A boca, seca.
Espero ter azar. – Azar no jogo.

[jb]

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Caixa da Memória

Hoje mesmo me perguntou o cronista:

1. O que você estava fazendo em 1978 (há 30 anos)?
Respondi:
Eu ainda era a respiração de Deus.

2. E em 1983, há 25?
Respondi:
Estava na cama com uma mulher.

3. O que você estava fazendo em 1988?
Respondi:
Exilava-me para Joinville.

4. E em 1993?
Respondi:
Escrevia meu plano para mudar o mundo conforme meus ideais.

5. O que estava fazendo há 10 anos?
Respondi:
Escrevia meu plano para mudar meus ideais conforme o mundo. Nos intervalos fazia poemas concretos e admirava as loiras.

6. E há cinco?
Respondi:
Criando este blog, que era em outro lugar (http://www.caixaderessonancia.blogger.com.br).

Agora, pergunto aos amigos abaixo o que eles têm escondido na caixa:
Douglas
Fran
Isabel
Cláudio

[jb]

Quatro cadeiras

SAL
O rosto temperado
Os olhos de molho
A boca em brasa

condimentam o domingo insosso na tua carne crua

sirva-me


AÇÚCAR
Algodão-doce na mão da criança
Sorriso diabético nos lábios da mãe
Receita médica debaixo do pacote de bolacha

fermentam em banho-maria a satisfação rica em vitaminas

sirva-se


AZEITE
Alívio imediato das dores
A quem come dos manjares do Rei
A corda da forca foi lubrificada pelo Ungido

e o cadafalso está ensopado de culpa

deram-me um prato de papelão


FARINHA
O garfo mexe a água quente: faz pirão
A língua não sente mais nenhum sabor
O estômago devolve as comidas de sempre

ele sabe: a sobremesa tornou-se a refeição principal

não aprendi a orar antes de comer

[jb]
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