sábado, maio 17, 2008

Ultravioleta

Púrpura nas ruas. Nas blusas, saias, vestidos, bolsas e demais acessórios. Delas. Femininos. São elas que fazem a moda, tão efêmera e inconstante quanto o temperamento delas domingo de manhã (ou sábado à tarde ou segunda-feira o dia todo). São elas que dão o tom. Que definem a cor da cortina do cotidiano e das noites desavisadas. Púrpura nas ruas. Nos entroncamentos. Nas pinturas. Nas curvas. Das mulheres.

De repente todas decidiram que o roxo (palavra demasiadamente masculina para uma cor de espírito sensível) seria o tom do momento. Por acaso, todas assistiram a mesma novela, viram o mesmo filme e leram (leram?) a mesma revista. Ou será que todas viram “A Cor Púrpura”, ou aquele filme (filme?) com a Milla Jovovich, e tiraram dali a referência para a paisagem monocromática de seus guarda-roupas? O certo é que, cansadas do vermelho-pecado, do azul-neón e do pretinho básico, elas decidiram, de alguma forma, sem prévia combinação, com num concílio desconhecido de instintos, dar visibilidade a trama púrpura que contracena com o cinza das ruas e com o branco das casas.

Púrpura, roxo, violeta. Tecnicamente, nada iguais. Nem cores são. Nascem de cores primárias, fruto de misturas bem calibradas. A diferença é sutil. São tons diferentes de uma mesma voz. Um voz que grita neutralidade, chora melancolia e soluça avidez. Tecnicamente, cada nuance orquestra sua própria sinfonia. Aos ouvidos de um chato das gráficas, a diferença é gritante, um ruído realmente incômodo. Mas aos olhos comuns, das retinas multicoloridas (muitas artificiais, diga-se) que cruzam a rua do Príncipe com a Nove de Março, a sutileza é nula. Uma música monótona e sem quebra. Mistura bagunçada com a palidez de placas, letreiros, paredes e humores. Ignora-se aqui, portanto, os tons, semitons, entretons e ruídos bemóis zunindo nas ruas. A olho nu, o que se vê é a combinação caótica entre o azul e o vermelho, ou ciano e magenta, como diria o chato da gráfica.

Roxo é nome informal, masculino. Lembra violência: agride. Violeta leva à rima pobre e vulgar, como o rio que corre para o mar. Púrpura não tem rima fácil, tem algo de divino, elevado, inatingível. Poesia, em suma. Feminilidade, na essência. É difícil a combinação para se chegar à púrpura. Da mesma maneira que é difícil a mulher combinar a roupa ideal para aquela festa, ou mesmo para ir ao mercado. Púrpura no corpo dela sugere a tentativa de fugir ao comum, ao usual. Uma ousadia e um esforço a mais para ser diferente. É a busca pela exclusividade, tal qual aquelas cores identificadas somente pelo número. E números não se repetem, sabe-se. Tal ousadia, socializada e replicada nas ruas, vulgariza-se. Entorna a visão. Pigmenta em marrom qualquer contraste. Não faz diferença, assim como a tinta branca que cai sobre o lençol idem. Poesia, pobreza ou informalidade, não importa. Esta cor-trindade não se encaixa muito bem nas convenções. Ao olhar de cima, Deus vê as mulheres púrpuras como jambolão caído do pé.

Elas estão em busca da cor invisível, da cor sublime. Da cor que ultrapasse a escala limitada e já sem graça do arco-íris. No encalço do ultravioleta, buscam a transparência da segunda pele, esperando perder a opacidade dos olhares alheios. Levam ao exterior a frieza de dentro. Tomam a decisão de estar ali: no limite entre o que aparentam e o que realmente são. O adorno violeta abre um portal para o reino onde cor, luz e som não são apenas três palavras feitas de três letras, mas três tempos de um mesmo ente: o jogo. O jogo das intenções, das combinações, dos números e das palavras, das necessidades, dos desejos, das possibilidades. O jogo dos traços, das nuances e dos ritmos. Um jogo onde o corpo é, ao mesmo tempo, das luzes, o espectro, das cores, a paleta e dos sons, a partitura. E elas querem quebrar o jogo e suas regras. Apagar as linhas, as marcações, os critérios. Ser, elas mesmas, o jogo, a regra e sua contravenção. Entrar, elas mesmas, numa terra sem hierarquias. Romper, elas mesmas, o quadrante de qualquer sentido.

O roxo é uma indefinição. Nem uma cor, nem outra. Um não-lugar. Um desespero. Uma febre. Um convite. Um “oi” sem compromisso. Atrás de uma simples camisa berinjela ou um longo vestido uva, está aquilo que não tem cor, é silencioso e é, por si só, iluminado. Está o ultravioleta, o além-roxo, o pós-púrpura. O indizível. O enigma atrás das cores, olhares e movimentos. A exata diferença matemática entre o que vemos, o que sentimos e o que imaginamos. E é daí que partem os sonhos. (Aqueles nunca lembrados após o amanhecer). E daí, o jogo começa.

Agita-se, enfim, o cego pincel. Misturas infinitas denunciam o quanto ainda há de branco debaixo do Sol. O quanto as ruas ainda são convencionais. O quanto as mulheres deveriam ser sextas-feiras.

[jb]
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