quinta-feira, janeiro 26, 2006

Infra-estrutura

Só vi ângulos retos. Nas ruas. A cidade virou um feixe de retas paralelas, incongruentes e péssimas. Não há mais curvas. Homens de amarelo retorceram avenidas, deixaram-nas sem mistérios, sem segredos, sem escondiduras, sem dobras. Estes homens, e outros ainda, estão sem tempo para arquitetar esquinas, fazer curvas e brincar de adivinhar o que se abstrai nas sinuosidades das vias. Miméticos, os amarelos escolheram a reta, a menor distância entre dois pontos, pois não sabem mais manusear astrolábios e sextantes. Perderam a atração pelas adjacências, pelos cantos, pelos becos, pelos contornos mais ousados. Mas continuam desorientados, não sabem onde querem chegar e estão sempre atrasados para compromissos inúteis. Uma cidade sem curvas é um deserto sem labirintos de areia nem miragens de sol. É uma infra-estrutura de descaminhos.

Retas são caminhos de cavalos. Os homens se adaptaram bem, mas os automóveis continuam a violentar os postes. A geometria do auto-engano tem conseqüências não-aritméticas. Cavalos estão longe de sofrê-las, o que não se pode dizer de seus semelhantes amarelos. A morte – um ângulo raso – faz morada em retas. Ela atravessa, mas é incerto o instante que vai cruzar a rua. Curvas, no entanto, são esconderijos. De cobras, de ventos e de nuvens. Curva perigosa é um pleonasmo. O perigo é a alma da curva. Aceitá-la é dar vida ao desconhecido, ao segredo, ao improvável, aquilo que está exatamente à frente, mas não se pode dar conta de sua excentricidade: o risco. O risco de cobras serem serpentes, de ventos serem tempestades, de nuvens serem meninas. Os amarelos da pós-modernidade odeiam o risco. São covardes, donos de um medo retilíneo. Gosto mais dos cavalos.

Curvas nunca foram retas. Nasceram como tais. Morrerão como tais. Exceto estas que agora estão sendo retorcidas e forjadas pelos amarelos. Morrerão? Sim, infelizmente. A nova geração de carros já está vindo sem direção (com retas não há a necessidade de guinadas), assim como crianças já nascem cegas. Não haverá mais placas de sinalização, nem semáforos. “Siga reto, sempre”. Enfim, um mundo perfeito para mulheres. Um tabuleiro onde se joga a mediocridade humana. Moro numa curva. Gosto da bifurcação que ela sugere. Esta não morrerá. Enquanto houver uma curva no mundo, haverá possibilidades, potências de coisas que poderão ser. Retas são monótonas. Curvas são trajetos de Fênix.


Não é o ângulo reto que me atrai,
Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual.
A curva que encontro nas montanhas do meu país,
No curso sinuoso dos seus rios,
Nas ondas do mar,
Nas nuvens do céu,
No corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo Universo.
O Universo curvo de Einstein.

Oscar Niemeyer
[jb]

domingo, janeiro 15, 2006

Minhas Casas No Mundo

Sou um peregrino sobre a terra. Sou andarilho. Sou um ar desmotivado pelo vento. Sou um retângulo descalço. Não tenho teto, casa, abrigo, moradia, habitação, residência, refúgio ou qualquer outro caramujo desse tipo. Vivo sob o orvalho das auroras, na proteção precária do Universo, com os míseros recursos que ainda brotam nesse deserto. É o que tenho, além do sonho de morar numa estação ferroviária.

Depois do útero, já estive em diversos outros recônditos. Num inverno rigoroso, nas Malvinas, vivi dentro de um pneu abandonado, atrás duma oficina de tratores. A experiência de oito semanas foi terrível, principalmente após a chegada dos mosquitos. Hoje me pareço com um ferradura ou uma curva da Rio-Santos. Mas era a melhor cobertura da época, e os vizinhos não incomodavam. No verão seguinte, me mudei para uma floresta tropical ao sul de Caracas. Fiz da folha de uma amoreira meu aconchego por mês e meio. Era uma superfície instável, mas permanente. Vi repetirem-se as estrelas todas as noites e os amanheceres sempre beijando as águas de um rio sem curvas ao horizonte. Terrível era o barulho das motoserras.

Cansa dormir sempre na mesma posição. Migrei para Moçambique. Invadi uma teia recém tecida por uma dessas aranhas caseiras e estúpidas. Não fiquei muito tempo. Tive problemas de mobilidade e o pé de girassol que me sustentava curvou-se à enxada que o arrancara. Havia também muitos urubus na área, o que me desagradava sobremodo. Estive num celeiro a 300 km da capital de Ohio. Para ser mais exato, fiquei alojado sobre uma carroça de feno estacionada dentro desse celeiro. Tive intrigas com morcegos e logo abandonei o lugar. São assim, continuadamente, minhas rotinas: chego num lugar, fico por certo tempo e depois me retiro, sem satisfações nem culpas. Já morei dentro de uma garrafa de Coca-Cola. Bula de remédio foi meu cobertor na Argélia. Fiquei trinta dias descansando de uma viagem à Normandia sobre um pára-raios na capital norte-americana. Gostei de uma estadia curta nos sinos das muitas capelas em Roma, apesar dos pombos impertinentes.

Depois de muitos caminhares e sobrevôos, atualmente estou numa casinha de correios na rua Caximira, 541, em Lisboa. Tem bastante cartas por aqui. Faz duas semanas e o dono ainda não veio pegá-las. Talvez esteja viajando ou, de fato, não more ninguém na casa em frente. Deve ser uma pessoa importante. Tem cartas do Brasil, da cidade de Joaçaba, em Santa Catarina, e de Timóteo, em Minas Gerais. Há uma revista de moda da Escandinávia e um grosso envelope pardo remetido de Moscou. Desconheço tais lugares e espero visitá-los algum dia. A casinha aqui é confortável, mas logo estarei seguindo outro rumo. Sou um nômade insatisfeito com qualquer paragem.

Outro dia dormi a beira de um trilho. Pensei em seguir até encontrar a estação. Quando percebi, à frente, a bifurcação em vários ramais, desisti. Não gosto de fazer escolhas. Não sou exigente. Suspeito não existirem mais trens. Suspeito não existirem mais estações. Sigo pela rodovia não pavimentada.
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