domingo, fevereiro 19, 2006

Quem somos antes do amanhecer I

Durmo.
À espera do trem na estação. Atrasado. Impaciente. Sem medo.

Um uivo de lobo me jogou na poça de lama. Acordei da viagem. Não vi o trem. Ainda atrasado. Eu era o trem. Era atrasado. Tinha vagões rodas cargas passageiros ferrugens trilhos à frente. Respirei a própria fumaça que liberava do meu forno-pulmão-traquéia. Olhei com olhos de ferro os aços que rastejavam embaixo dos meus pés mecânicos. E segui numa direção sem curvas. E segui sobre pontes. E segui por penhascos. E segui os avisos. Embora quisesse seguir o olhar desalinhado do vento...

Não há semáforos em trilhos.

E trens são demônios que correm sem freios. Eu era um demônio sem freios. Acabei de esmagar um suicida. Pobre diabo. Eu apitei. Apitei. Apitei. E apitei. Pobre diabo atrasando a viagem. Corro porque tem gente esperando na outra estação. Atrasado. Pessoas olharam pra mim de cara feia. A minha é de metal mal lavado, mas não escondo a oxidação do tempo como aqueles. Penso sobre trilhos horários ramais vegetação a bolsa esquecida em casa com a escova de dentes. Não tenho dentes.

Sou uma fornalha.

Sou um carrossel que não gira. Sem cavalos nem crianças chorando. Apenas ursos no telefone celular. Penso em cinzas lenhas e carne humana. Inferno em trânsito. Do porto ao pórtico do mundo. Não voltarei. Adiante uma ponte esculhambada: trajeto interrompido pela escassez de cuidado. A negligência do ditador sentado numa cadeira roída. Abruptos gritos e lamúrias tardias. Mas trens andam para frente. E eu tinha a minha pressa. A alma na ferrovia. Segui. Bati na córnea do medo.

Amanheço.
À espera do trem na estação. Atrasado. Impaciente. Com asas.


[jb]

4 comentários:

Anônimo disse...

às vezes eu me sinto o metrô...de asas cortadas...indo e vindo...de e para... o mesmo lugar.
um beijo

Cláudio B. Carlos disse...

Gostei.

*CC*

isabel mendes ferreira disse...

muitos. poucos. outros. o mesmo. todas as manhãs....


bom texto.
parabéns. abraço,

Edilson Pantoja disse...

Gostei demais do texto. Pena tratar-se de um sonho. Que tal esquecer a prestação de contas com o "real"?
Um abraço!

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