sábado, dezembro 02, 2006

O homem que joga pedras

Acorda. A primeira pedra vai no rádio-relógio estúpido que acaba de acordá-lo. A segunda, na lâmpada que insiste em iluminar. A terceira, no vidro da janela sem cortinas. É uma boa maneira dele começar bem o dia. Ele é o homem que joga pedras. Cada canto de cada cômodo da casa tinha um amontoado de pedras, tal qual maçãs podres caídas do pé. Quando estava na rua, levava uma bolsa cheia delas e as usava todas em todo percurso. Ao chegar no destino, o devido reabastecimento seria necessário. No local de trabalho, um escritório, mantinha uma caixa com os bólidos calcários ao lado da lixeira. Diariamente esta também era reabastecida.

Ele sai do quarto com os pés sem proteção. Pelo corredor, antes de chegar à cozinha, percebe a televisão chuviscando na sala. Mais uma pedrada: vidros televisivos no carpete. Afinal, a chuva lá fora já era o bastante. Murmura algo e segue. Na cozinha, uma pedrada certeira bem no copo que deixara com resto de café de ontem: vidros cafeinados ao chão. Despreocupado, mas com certa irritação, ele avança até o banheiro. Um passo adentro, junta uma pedra, maçã das grandes, e lança contra o espelho: vidros esfarelados sobre a pia. Para quem o visse agora, juntando outra pedra, pensaria rapidamente que a jogaria dentro do vaso sanitário ou contra o chuveiro. Mas não. Num giro rápido de corpo atira na janela na cozinha, exatamente ao extremo de onde está. Vidros e pedras não se entendem bem naquela casa.

O homem toma banho rápido. Retorna ao quarto, não sem antes destruir com três pedradas o quadro de Monet na parede de acesso à sala. - Que diabos esse quadro faz nessa parede!, diz. Ou melhor, grita. Foi o primeiro (mas não único) objeto não-vidro danificado naquele dia. Fora o hábito impulsivo, ele é um sujeito tranqüilo. Arruma-se sem pressa, calça sapatos de couro. Pega a mala de trabalho sobre a escrivaninha. No percurso até outro cômodo, chuta uma pedra perdida ao chão. A força do chute é desproporcional. A pedra alcança altura e faz o telefone de gôndola sair fora do gancho. O homem faz cara feia. Irrita-se pelo ato foi impensado. Nesse outro cômodo, ele pega a bolsa onde carrega as pedras. Ele abastece com muitas delas que ficam depositadas num enorme baú ao fundo. Feito esse trabalho indispensável, sai de casa sem olhar para trás, com o escrúpulo de quem deixa o lar na mais perfeita harmonia. Na garagem, dorme o cão. Despede-se do animal em três atos: uma pedrada na costela, uma entre os olhos e mais uma na perna esquerda.

Não há cartas na caixinha do correio. Bom motivo para uma nova pedrada antes de atravessar o portão. E, excesso dentro da bolsa, algumas pedras caem no chão. Nervoso com as perdas, o homem mostra-se trôpego ao andar na rua. Entra no ônibus.
– Bom dia, motorista. Desculpe quebrar o pára-brisa!
– Bom dia. Já é o terceiro essa semana.
– Preciso melhorar.
Os passageiros o ignoram. Pelo menos até ele descer. À saída, quando o ônibus já ganhava velocidade, ele não perdeu tempo em atirar pedras na traseira do veículo. Agora sim, as pessoas de dentro o xingam, sem constrangimentos.
É um dos primeiros a chegar no escritório. Logo à entrada, ainda na portaria, joga com violência uma grande pedra, maçã das boas, na sirene da chancela. O guarda não reclama, visto esse ser um ato tão comum como, de imediato, apedrejar o carro da secretária – sempre o primeiro a estar estacionado. Ao subir da escada deixa em cada degrau, ao canto direito, uma pedra de forma arredondada. Com a bolsa ainda bastante carregada, ele chega, enfim, na mesa de trabalho. Uma pedrada no monitor do colega do lado, que ainda não chegou, e duas pedradras no próprio computador. Está aí uma boa maneira de dizer “bom dia, pessoal”. Alguém, o novo estagiário, responde o cumprimento com voz escondida. O homem considera a atitude como sincera e uma pedrada no rosto, mesmo a longa distância, faz o garoto ter um pouco mais de respeito.

Quando o comendador geral chega, percebe tudo na normalidade cotidiana. Copiadora, telefone, fax, vidro fumê do arquivo-morto, mapas na parede, aquário sem peixes: tudo quebrado, rasgado, danificado, destruído. Apedrejado. Aliás, quase tudo, simplesmente por uma coisa: o sangue do estagiário pelos corredores.
– Deu de jogar pedras em pessoas agora?
– Estou incomodado. Tenho pedras no sapato.
– Dormiu no escuro novamente!
– A lâmpada está quebrada.
– Você perdeu a sensibilidade, foi isso.
– Uma nova fase, talvez.
– E como resolvemos esse sangue?
– Tenho mais pedras...

Sim, era uma nova fase. Uma descoberta. Vidros, madeiras e objetos não sangram. O homem sai cedo do trabalho. Vai conhecer pessoas. Conhece. É atitude de coragem. Pensa que será interessante acordar com uma mulher ao lado amanhã. Já planeja que o rádio-relógio será o alvo da segunda pedra.
– Querida, quer maçãs?

4 comentários:

douglas D. disse...

gostei!

isabel mendes ferreira disse...

beijo


beijo


bom natal.

douglas D. disse...

cor por descobrir...
saberemos.
abs!

Fran Hellmann disse...

M-U-I-T-O-B-O-M-!

Garotinho talentoso, adorei o blog!

Bj

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