sexta-feira, julho 24, 2009

Rara leveza

Há uma rara leveza nos pés da bailarina. Mistura de brisa e fúria. De jato e balão. Fuga e permanência. Os contornos da sapatilha delimitam territórios onde os abismos se avizinham com as alturas. Dançar é correr o risco do voo e desdenhar a queda. As sapatilhas são asas colocadas nos pés, desafiando a gravidade em movimentos aéreos. Um voar descontrolado diria alguém preso ao chão. Não. É um voar em planos perfeitos, de mensagens claras escritas como em nuvens, de desenhos no ar, de textos inteiros digitados pelos pés-pincéis da palavra. Anda, dança, corre, pula, salta, troveja, viaja o corpo-alfabeto da bailarina sobre o palco, campo negro pronto a semeaduras. A cada passo da menina feita de plumas, formam-se letras. Pernas em curvas, braços em linhas, tronco em ângulos incomuns. E a cabeça como acento agudo sobre o corpo, um pingo no “i”, quase adorno. Verbos vão sendo construídos de carnes dobradas e torcidas, adornados por figurinos coloridos: pano de fundo, véu que esconde o mistério a ser revelado. Pela sequência de passos-letras, dizeres neblinam o ar. Na sequência de dizeres, há manuscritos feitos pelos pés. No rastro da sapatilha de giz, no quadro-negro do palco fixam-se contos inteiros. As crianças já sabem ler bem antes de irem à escola.

A rara leveza da dança é a rara beleza da criança. Da leitura do mundo pelo olhar de vislumbre. Do olhar o mundo com olhos de avião ou de pássaro inquieto. Do voo, da aventura como necessidade. Uma necessidade solta, insignificante, apenas agasalhada pela seda branca do vento. A rara leveza da dança é feita do mesmo peso dos sonhos. Um peso ligeiro, ágil, livre, inconsciente. Uma leveza da mesma que habita a imaginação, os quartos de sol, as janelas abertas, os cabelos loiros da mulher de vestido xadrez e as borboletas de setembro. Uma leveza de balão com velocidade de jato. A rara leveza da dança é quase som. Não raro, um canto feito só de gestos. E tintas. E olhares. Daí pintura: passeio à beira da colina.

Não há medo nos quadrantes da leveza. O compasso das pernas risca semicírculos breves de calma, entrecortados por saltos de espanto e de grito. Não um grito de temor ou de crime. Grito de cachoeira, espanto sublime. A sapatilha da bailarina é escudo na escuridão. Paredes, palco e plateia são florestas de névoa. A luz só ilumina o escudo, só reflete o corpo de espelhos da menina que veste plumas. Não há nada mais a olhar, não há notas de rodapé, não nem mesmo o horizonte. A rara leveza da dança, da dança em versos dos pés da bailarina, só existe em função da altura. A distância vertical entre a sola do escudo tecido em fios com a lona do tablado. A distância entre o piso e o topo desse tablado. A distância dos olhos até o piso. A altura do voo até os olhos. Há uma rara leveza que flutua o olhar. E qual criança não quer ser nuvem colorida? Ou bolha de sabão?

3 comentários:

dani carrara disse...

...escutei a dança de longe. lindo texto.

ítalo puccini disse...

a rara leveza do texto é a beleza do ler: o corpo, a dança, a vida, o que está e não está escrito.

belíssimo escrito!

parabéns!

ítalo puccini disse...

li de novo esse texto.

gosto demais.

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