segunda-feira, outubro 22, 2007

A Monotonia do Fogo

O fogo só queima
e só.
O fogo só arde
e só.
O fogo só consome
e só.

O fogo não faz nada além do que deveria fazer

Em suas tripas fulgurantes
Encena o tédio
- maquinalmente engendrado
do cotidiano líquido-imperfeito

O fogo não tem autonomia. O fogo é perfeito
O fogo não faz nada além do que deveria fazer

Há fogo na brasa
Há fogo na cinza
Há fogo na fumaça
Há fogo onde há furor
chaleira fervendo café quente asfalto da praia lixo da cidade forno de pão crematório floresta seca laje de pedra maçarico motor turbina lixão chepa de cigarro paixão olhar assassino avião bomba vermelho sexo grito muro vulcão

Há fogo na cor dos teus olhos. O fogo não tem olhos.
O fogo não tem autonomia. O fogo é perfeito
O fogo não faz nada além do que deveria fazer

O fogo é um estranho
Um estranho gafanhoto
Gafanhoto que consome a lavoura
A lavoura do dia pela raiz
Pela raiz encravada na terra
Na terra encharcada pela água

O fogo sente fome. Ele precisa do que planto
Há fogo na cor dos teus olhos. O fogo não tem olhos.
O fogo não tem autonomia. O fogo é perfeito
O fogo não faz nada além do que deveria fazer

O fogo se cansa
de só queimar
de só arder
de só consumir
O fogo tem sede de líquidos
álcool, gasolina, querosene, óleo, mercúrio
E tem sede de sólidos
lenha, carvão, papel, tecido, osso, plástico

O fogo está preso na própria combustão
O fogo ateia-se ao próprio incêndio
O fogo queima por si só
O fogo arde por si só
O fogo consome por si só
E só

O fogo é um ingênuo. Só não sabe que depende de mim
O fogo sente fome. Ele precisa do que planto
Há fogo na cor dos teus olhos. O fogo não tem olhos.
O fogo não tem autonomia. O fogo é perfeito
O fogo não faz nada além do que deveria fazer

Meu olhar é um sopro.
Meu olhar é um vento.
Num rápido piscar, nasce o fogo.
Num rápido piscar, morre o fogo.
O fogo é cego: gafanhoto perfeito.

O fogo me chama
e só.
O fogo não faz nada além do que deveria fazer

[jb]

3 comentários:

Priscila Lopes disse...

Pelo amor de Deus, colega, chega a ser uma indecência um poema tão ofuscante, de tão primoroso, tão bem feito e pensado, publicado num blog despreocupadamente. Não. Este poema está acima do virtual e do real, paira no ar reflexivo, e resiste. Meus parabéns!

Espero que volte mais vezes ao Cinco Espinhos.

Abraços!

Suzana Mafra disse...

Belo poema de fogo e fôlego.

Obrigada pela visita.

vieira calado disse...

Muito interessante este poema.
Bem construído, fluido.
Um abraço.

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