quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Impermeável

Asfalto, concreto, piso, betume, calçada, laje, cimento. Nada disso combina com esta cidade que chora chuva, respira umidade e tem o corpo encharcado. A água não consegue mais respirar. Não se infiltra, não se esconde nos tubos, não se aninha em seus lençóis. Ela não dorme, faz vigília o tempo todo sob céu estrelado ou de nuvens carregadas. As águas das torneiras, das chuvas e dos esgotos correm sobre dutos cimentados e entupidos, sobre o asfalto-lâmina que racha-se quando os líquidos tentam penetrar sua pele de piche. Na beirada da casa, o desaguar molhado de pingos bate em pisos intransponíveis. Ele tenta fugir, escorrer, deslizar: não encontra desaguadouro, drenagem, ralo. Revoltado, forma poças e alagamentos. Águas empoçadas esperam com rasa paciência o sol: tornar a ser vapor e subir aos braços inquietos de cúmulos-nimbos.

O cidadão líquido gosta de água. Mineral, potável, de coco, que-passarinho-não-bebe, gelada, do rio, do mar, da piscina, dos olhos. Odeia porém, um tipo de água: a água que voa, a água vertical, a água que deságua, a água-chuva-que-Deus-dá. Odeia tanto que faz tanques, barreiras e misturas químicas que impedem o mergulho da água no solo-esponja da cidade. Muitos habitantes molhados lacraram o chão onde pisam como cofres de zinco. Jogaram as chaves no mar e já esqueceram a combinação para abrir. A água que cai do céu não é bem recebida em sua própria terra. Ela faz vingança aguada à falta de zelo do homem impermeável: invade casas pelas portas, janelas e outros buracos.

Há água sobre o asfalto e não é miragem. Há poças nas calçadas recém assentadas, há pingos aglomerados esperando ônibus nos terminais, há águas reticentes no centro alagado e nos cantos mofados da cidade. A praça com espelho d´água virou chão cinza-cimento. Jardins e gramados viraram pisos decorados com desenhos de flores que não fazem fotossíntese nem bebem água. Chuvisco, garoa ou chuvarada estão impedidas de entrar nas artérias da terra: hemorragiam-se todos os dias, chova ou faça sol. As águas das chuvas e dos rios reclamam seus ciclos, caminhos, bueiros e saídas. Querem correr as correntezas e quedas que lhes são próprias. Obstruída, água parada é morte, sujeira e medo. O limo no muro, nas trincas dos paralelepípedos e nas rachaduras da parede são avisos da resistência aquática. A água derramada quer apenas ser água, deixar-se levar pelos poros do chão, entrar no casulo da terra e metamorfosear-se em novas nuvens, novas chuvas e novos rios em verões do por vir.

Calhas, encanamentos, tubulações, conexões, drenagens, sulcos e escoadouros são palcos perfeitos para os movimentos dançantes das águas e o respirar altivo da terra. As águas precisam ser livres para que todos possam andar pelas ruas sem precisar vestir aquele desconfortável escafandro.

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