Trêmula,
a flâmula,
anuncia terra à vista.
Frenética,
a carne,
suspira por um descanso.
Instável,
a nau,
ancora ligeira na praia.
Estupro, à mata virgem.
Estranho, esse homem sem roupas.
Estrago, à natureza impune.
Antes, uma reza ao Nosso Senhor:
Pela Coroa,
Pelas almas,
Pelos naufragados,
Pela rica terra que hoje descobrimos.
Desculpe-nos pela bagunça.
A gente arruma tudo depois.
[jb]
segunda-feira, julho 10, 2006
domingo, junho 25, 2006
Trinômio da Aridez Humana
A TERRA
Do pó que somos feitos, fazemos nossas casas.
Da casa que nos abriga, fingimos nossos medos.
Do medo que nos acusa, criamos camas de barro.
O HOMEM
A peste assola ao meio-dia. O sentinela desapercebe o inimigo. O pai busca no bolso alguns trocados para o pão. Não se pode aguardar tempos de paz enquanto não chove, enquanto existir horas e prazos, enquanto haver coisas a serem guardadas, enquanto persistir a urgência em sobreviver.
A LUTA
José foi iludido por uma miragem. José desapontou a mulher e os filhos. José é tido como desonesto na vizinhança. José não foi à igreja no domingo passado. José vai deixar a cidade. José não tem cachorro pra levar junto. José não é um homem. José é só um nome.
Do pó que somos feitos, fazemos nossas casas.
Da casa que nos abriga, fingimos nossos medos.
Do medo que nos acusa, criamos camas de barro.
O HOMEM
A peste assola ao meio-dia. O sentinela desapercebe o inimigo. O pai busca no bolso alguns trocados para o pão. Não se pode aguardar tempos de paz enquanto não chove, enquanto existir horas e prazos, enquanto haver coisas a serem guardadas, enquanto persistir a urgência em sobreviver.
A LUTA
José foi iludido por uma miragem. José desapontou a mulher e os filhos. José é tido como desonesto na vizinhança. José não foi à igreja no domingo passado. José vai deixar a cidade. José não tem cachorro pra levar junto. José não é um homem. José é só um nome.
[jb]
terça-feira, junho 13, 2006
Retorno de K.
Um dia o retorno acontece. Quando os silêncios já não são mais necessários e todos os ressentimentos não são nada diante da urgência em dissimular a vida. Nada a perder depois de vinte anos sem ser reconhecida pelo simples fato de existir, de poder colocar o pés brancos numa sandália e caminhar na rua sem pó. Os olhos azuis, os cabelos loiros, o corpo esquálido mas sensual, o sorriso que deixa a gente sem graça, o vocabulário dos braços que insiste em dizer palavras novas. Nada disso é importante após os filhos crescerem e rejeitaram a salada de beterraba. Após os anos se converterem em pedras e convencerem os homens que o tempo não cabe numa ampulheta.
K. voltou. Terminou o contrato com os inquilinos. Habitará novamente a velha casa abandonada cinco anos atrás, quando era só ela e seus sonhos nesse mundo. Volta agora com marido e filhos e com uma solidão arranjada no caminho. Sim, acompanha-a uma solidão toda dela, uma solidão masculina e mais duas solidões que crescem à revelia das outras duas.
K. surpreendeu-se com a casa. Tudo estava tão organizado, firme e limpo como à época da partida. Paredes, cômodos, jardim, teto, janelas. Parece que a casa não sofrera nenhuma interferência do tempo e do descuido dos homens, ao contrário dela. K. ficou feliz pela casa. Era uma felicidade boa, uma quase-esperança.
Arrumou as bugigangas da mudança com certo ânimo. Sorriu para um dos filhos quando percebeu que os pratos, novos, não quebraram com as truculências da viagem. À noite, antes de dormir, beijou a boca sem gosto do marido, e virou os olhos para a parede. Estava cansada. Disposta a ouvir somente as coisas concretas.
Desde que casou, só acredita naquilo que pode tocar com as mãos.
sábado, junho 03, 2006
Liquidez Pós-Moderna
Duvido muito desse cinza homocinético na parede.
Duvido muito dessa parede pintada com cal.
Duvido muito desse teto perturbado pelo barulho insilente do ventilador.
Duvido muito desse teto perturbado pelo barulho insilente do ventilador.
Não creio que esteja só, embora exista apenas uma sombra aqui.
Não creio que os números do calendário sobre a mesa estejam certos de seus dias.
Não creio que os livros empilhados possam atingir o telhado até o fim de semana.
Desacreditei totalmente das bulas, dos contratos e do aviso do lado de fora da porta.
Desacreditei das epígrafes, dos consolos e das admoestações.
Desacreditei também das recompensas e faço as coisas pela exata essência de estar fazendo.
Suspeito.
Suspeito.
Suspeito.
Não existe água doce ou salgada:
Só existe água. Corrente.
Só existe água. Corrente.
[jb]
segunda-feira, maio 15, 2006
Notícias Anônimas
aconteceu mas não saiu no jornal
Trilha de formigas é desfeita por roçadores
Ação atingirá também formigueiro próximo a casa dos Knüsty
Caminho de formigas utilizado há mais de dez anos foi destruído por roçadores em Amuzina. Trilha sobre terreno árido da cidade ligava o formigueiro até as dependências da casa da família Knüsty e movimentava diariamente cerca de sete mil formigas no carregamento contínuo de restos de comida, folhas secas e excedentes calcários. A ação dos roçadores objetiva a preparação do solo para o plantio, apesar da pouca fertilidade, e atingirá também o formigueiro, localizado a 350 metros de distância da casa. Ambientalistas temem que destruição possa interferir drasticamente na cadeia alimentar local, além de provocar grave desequilíbrio no ecossistema.
aconteceu mas não saiu no jornal
Veículo suja muro ao passar em poça d'água
Respingos atingiram também um hidrômetro, mas síndico do prédio não reclamou
A água de uma poça foi lançada contra o muro de um residencial ontem à noite, após um veículo tipo caçamba, placas AYZ-6589 de Massaranduba, ter passado pelo buraco, na rua Quinta da Forquilinha, em alta velocidade. O evento ocorreu após as fortes chuvas de ontem que alagaram diversos bairros. Cerca de um metro quadrado do muro ficou sujo com a lama, além dos respingos que atingiram o visor de um hidrômetro próximo. O síndico do prédio, em depoimento a esta editoria, não reclamou do ocorrido, pois uma pintura de aparência no muro e nas garagens já estava programada para a próxima semana pelo residencial.
Respingos atingiram também um hidrômetro, mas síndico do prédio não reclamou
A água de uma poça foi lançada contra o muro de um residencial ontem à noite, após um veículo tipo caçamba, placas AYZ-6589 de Massaranduba, ter passado pelo buraco, na rua Quinta da Forquilinha, em alta velocidade. O evento ocorreu após as fortes chuvas de ontem que alagaram diversos bairros. Cerca de um metro quadrado do muro ficou sujo com a lama, além dos respingos que atingiram o visor de um hidrômetro próximo. O síndico do prédio, em depoimento a esta editoria, não reclamou do ocorrido, pois uma pintura de aparência no muro e nas garagens já estava programada para a próxima semana pelo residencial.
Trilha de formigas é desfeita por roçadores
Ação atingirá também formigueiro próximo a casa dos Knüsty
Caminho de formigas utilizado há mais de dez anos foi destruído por roçadores em Amuzina. Trilha sobre terreno árido da cidade ligava o formigueiro até as dependências da casa da família Knüsty e movimentava diariamente cerca de sete mil formigas no carregamento contínuo de restos de comida, folhas secas e excedentes calcários. A ação dos roçadores objetiva a preparação do solo para o plantio, apesar da pouca fertilidade, e atingirá também o formigueiro, localizado a 350 metros de distância da casa. Ambientalistas temem que destruição possa interferir drasticamente na cadeia alimentar local, além de provocar grave desequilíbrio no ecossistema.
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segunda-feira, maio 01, 2006
Debilitada

Ela precisava de vitaminas. Pegou um bouquet de rosas e colocou no liquidificador. Juntou açúcar e bananas. Misturou tudo. Tomou. Saiu: satisfeita.
[jb]
Liquidação
Sou consumidor. Cliente, usuário, comprador. Odeio liquidações. Promoções. Brindes. Prazos. Leve dois, pague um. Tudo com cinqüenta por cento de desconto. Leve agora e só pague em dois mil e nove. Concorra a uma viagem para a Copa. O que você vai fazer com seu décimo-terceiro? Me desagrada a publicidade, os outdoors, placas, faixas, banners e vendedores. Me desagrada as alíquotas, os juros baixos, os financiamentos, os cheques pré-datados e as datas de vencimentos. Tudo isso é abjeto, enquanto eu só quero comprar. Quero gastar.
Não tenho cheques. Nem cartão. Não preciso economizar. Não preciso trabalhar. Eu só quero comprar e gastar. Gastar. Não quero descontos, nem brindes, nem parcelamentos. Pago à vista, com dinheiro vivo. Não há porque evitar. Eu tenho dinheiro, muito dinheiro. E quero gastar. Pagar juros, multas e correções. Ninguém entende isso. Não negocio. Pago.
Compro de tudo. Artesanato, flores, pneus, chinelos, livros, aviões, barbantes, brinquedos, prédios, frigideiras, linhas de pesca, cadarços. E de todos. Meninos de semáforo, ambulantes de calçada, feirantes de rua, atendentes de cinema, vendedores de colchões, funcionários da Levi´s, Pierre Cardin e Calvin Klein, representantes da Microsoft, distribuidores da Walmart, gerentes do HSBC, investidores da Nasdaq, traficantes da Rocinha, políticos de Brasília, diplomatas de Paris, protistutas da Tailândia e plagiadores americanos.
Compro e pago. Não devo nada. Se devo, cobre de mim, por favor. Quero pagar. Tenho dinheiro. Quero gastar. Não gosto de datas comerciais. Páscoa, Namorados, Natal, Dias das Mães. Eu compro o ano todo. Todos os dias são bons motivos para gastar. Não negocio. Não espero abaixar o preço. Pago. Liquido faturas. Coleciono notas fiscais, bolsas com estampa da lojas, etiquetas com grifes e instruções de lavagem. Não uso nem dou nada. Eu compro e pago. Não alugo nada. Nem filmes, carros, roupas, salas comerciais, apartamentos. Tenho dinheiro. Compro. E só.
O que você tem para vender? Eu compro. E pago. Não quero nada de graça. Tudo tem um preço. Eu pago todos os preços. Não faço doações. Eu quero sempre algo em troca. Eu compro. E pago. Não despediço meu dinheiro. Não negocio. Pago.
O que você tem para vender?
sábado, abril 22, 2006
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pneumoultramicroscópicosilicovulcanocaniótico
recomeçouvindoutroseresememórialgasirenesaposilêncioum
ansiedadelásticatravessadaoutrordináriotorrinolaringologist
amanhãlmoçespereminhausentestradantevendoutrasaúdese
mergulharemariresistireincidênciaserãoperadasemedicamen
tosalvoutrapariçãondesperarásentadorganizandosemediocrid
adexamespeciaisemprestareignorandoseusentimentosemais.
O próximo, por favor.

[jb]
recomeçouvindoutroseresememórialgasirenesaposilêncioum
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mergulharemariresistireincidênciaserãoperadasemedicamen
tosalvoutrapariçãondesperarásentadorganizandosemediocrid
adexamespeciaisemprestareignorandoseusentimentosemais.
O próximo, por favor.

[jb]
domingo, abril 16, 2006
mortes
Morreu Cíntia.
Morreu Penélope.
Morreu Aldo.
Morreu Bola, o cachorro.
Morreu Penélope.
Morreu Aldo.
Morreu Bola, o cachorro.
Todos morreram num mesmo dia. Todos renderam notícias nos jornais. E comentários nos corredores da escola. A tv veio registrar o fato inédito. A rádio veio colher depoimentos. O dia foi tumultuado.
Dennis voltou sozinho para casa. Sozinho de amigos, de alegrias e de consolo. Ainda não acreditava que seus melhores amigos se foram sob o telhado de um mesmo dia, sob a sombra de diferentes circunstâncias. – dez anos para fazer, um dia para perdê-los.
Encontrou a casa vazia. Todos estavam na capela chorando os mortos. Não tinha leite nem pão. Mas Dennis também estava sem fome e sem sede. Tomou água para sentir-se vivo, digno de alguma necessidade. Foi para a sala e sentou-se no sofá. Fechou os olhos. Chorou.
Os outros chegaram. Viram Dennis no sofá. Resolveram não incomodá-lo em sua dor. Lica foi preparar café. Todos estavam desde cedo praticamente sem comer. Caio foi reler o jornal na expectativa de que alguma coisa estivesse errada, ou que uma nova notícia já estivesse escrita sobre aquela. Com surpresa, olhando para Dennis, que dormia, se indignou mais ainda por perceber que realmente nada mudara.
O café ficou pronto. Dennis acordou sobressaltado. – ainda é hoje? – sim, o hoje é sempre o dia mais longo da vida, disse Caio da cozinha, quase gritando. – então minha dor tem esse nome: hoje. Lica interfere, fazendo o convite: - sossega Dennis, venha tomar café.
– desculpe, mas vou ter que sair.
– aonde você vai? devia descansar. amanhã também será um dia difícil.
– vou visitar meus ontens. há muita vida por lá. talvez faça novos amigos.
No dia seguinte, ninguém morreu. Os jornais circularam normalmente. Dennis ainda não voltou. O ontem é uma prisão: teia de aranha.
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domingo, abril 02, 2006
Quem somos antes do amanhecer III
Ninguém passa por mim. Obrigo as pessoas a darem a volta no quarteirão. A passarem de largo, a metros de distância. Temem que eu desabe sobre elas e se atrasem para o trabalho. O medo faz da gente uns velhos que desconfiam até mesmo do vento parado na calçada. Admiro a criança que invade canteiros, pula cercas e arrebenta barragens. Mas crianças estão livres para brincar somente à tarde. Eu ponho limites a essas ruas. Domino os semáforos, as placas, os estacionamentos, os bares, as varandas. Determino entradas e saídas. Alvarás para o mundo. Eu divido a cidade e suas rotinas, suas éticas, suas perversões. Veja como é fácil manipular as pessoas: nada além de cimento, areia, tijolos e musgo. E um pouco de água pra não dizer que não sou flexível.
Dividindo a manhã: muro. Fronteira entre o ontem desprezível e o acordar pela metade. Como se divide o tempo em minutos, segundos e respirações, desunidos somos em sentir, pensar e agir, embora cabeça, tronco e membros estejam ligados por nervuras encadernadas à carne. Abandonei na madrugada insalubre a boa vontade de viver a vida como se ela requeresse isso de mim. Como se fosse um dever seguir a luz que se alumia atrás de montanhas brilhantes, condenando as trevas deixadas (senão feitas) por minhas mãos ainda sem furos, as mesmas que agora estão no bolso, mas que geralmente se ocupam de quebrar lâmpadas ou pagar passagens de ônibus. A minha perna direita convenceu a esquerda para atravessarem a rua, juntas. Penso que é preciso olhar para os dois lados antes de fazer isso. Numa esquina liquefeita em desacordos, raramente existem ruas, no máximo, atalhos para desfiladeiros sem curvas. Guardo ainda essa prudência: mantenho os olhos abertos desde que nasci.
Parede. Cortina. Divisória. Alambrado. Cerca. Lamenta-se muito ter que partir. Deixar o descompromisso para trás. Deixar o sonho, a fuga e a felicidade. Deixar a loucura, os gritos, os passos incoerentes, os pulos sobre os arames. Há um dia a ser feito em horas. Uma hora repetida oito vezes. Talvez a chance de acinzentar-se ao meio-dia seja pequena, ou um aglomerado de fogos mate qualquer aceitação. Talvez um cão ladra saudando minha presença, mas logo se lembrará que não tem o direito de opinar. Já esqueci das vivências anteriores a esta data. Até lembro dos espinhos nos pés, mas agora não sinto dor nenhuma. Dizem que possuía segredos engavetados atrás de risos infantis, mas nessa época ainda não era vivo. Uma vida é assim: fósforo e circunstância, e nada além das 06h30min.
Somos divisão. Acordamos em pedaços sem sincronia. Árvores negam-me a sombra, enquanto somos esquartejados. Os assassinos estão livres e almoçam comigo. Um homem que vive de madrugadas carrega o machado roubado. Uns juntam-se em camas. Outros dividem cômodos e salários. Eu desmonto-me na noite, esmiuçando e ajuntando pedras para estancar uma hemorragia chamada aurora.
[jb]
Dividindo a manhã: muro. Fronteira entre o ontem desprezível e o acordar pela metade. Como se divide o tempo em minutos, segundos e respirações, desunidos somos em sentir, pensar e agir, embora cabeça, tronco e membros estejam ligados por nervuras encadernadas à carne. Abandonei na madrugada insalubre a boa vontade de viver a vida como se ela requeresse isso de mim. Como se fosse um dever seguir a luz que se alumia atrás de montanhas brilhantes, condenando as trevas deixadas (senão feitas) por minhas mãos ainda sem furos, as mesmas que agora estão no bolso, mas que geralmente se ocupam de quebrar lâmpadas ou pagar passagens de ônibus. A minha perna direita convenceu a esquerda para atravessarem a rua, juntas. Penso que é preciso olhar para os dois lados antes de fazer isso. Numa esquina liquefeita em desacordos, raramente existem ruas, no máximo, atalhos para desfiladeiros sem curvas. Guardo ainda essa prudência: mantenho os olhos abertos desde que nasci.
Parede. Cortina. Divisória. Alambrado. Cerca. Lamenta-se muito ter que partir. Deixar o descompromisso para trás. Deixar o sonho, a fuga e a felicidade. Deixar a loucura, os gritos, os passos incoerentes, os pulos sobre os arames. Há um dia a ser feito em horas. Uma hora repetida oito vezes. Talvez a chance de acinzentar-se ao meio-dia seja pequena, ou um aglomerado de fogos mate qualquer aceitação. Talvez um cão ladra saudando minha presença, mas logo se lembrará que não tem o direito de opinar. Já esqueci das vivências anteriores a esta data. Até lembro dos espinhos nos pés, mas agora não sinto dor nenhuma. Dizem que possuía segredos engavetados atrás de risos infantis, mas nessa época ainda não era vivo. Uma vida é assim: fósforo e circunstância, e nada além das 06h30min.
Somos divisão. Acordamos em pedaços sem sincronia. Árvores negam-me a sombra, enquanto somos esquartejados. Os assassinos estão livres e almoçam comigo. Um homem que vive de madrugadas carrega o machado roubado. Uns juntam-se em camas. Outros dividem cômodos e salários. Eu desmonto-me na noite, esmiuçando e ajuntando pedras para estancar uma hemorragia chamada aurora.
[jb]
domingo, março 19, 2006
Hebdomática
MARX
O sangue coagulará na boca dos predadores.
JOYCE
Um homem que anda na rua deve odiar calçadas.
SARTRE
O corpo não é nada se não puder ser liberdade.
ESOPO
A espada corta os dois lados da folha.
PESSOA
Descaminho é o trajeto do equilibrista até a outra ponta.
NIETZSCHE
Existem coisas na montanha que Moisés não trouxe.
SHAKESPEARE
O gato não desce da árvore e a criança fica sem brincar.
[jb]
O sangue coagulará na boca dos predadores.
JOYCE
Um homem que anda na rua deve odiar calçadas.
SARTRE
O corpo não é nada se não puder ser liberdade.
ESOPO
A espada corta os dois lados da folha.
PESSOA
Descaminho é o trajeto do equilibrista até a outra ponta.
NIETZSCHE
Existem coisas na montanha que Moisés não trouxe.
SHAKESPEARE
O gato não desce da árvore e a criança fica sem brincar.
[jb]
quinta-feira, março 09, 2006
Quem somos antes do amanhecer II
Por que é preciso que tenhamos corpos? Não basta esta alma habitada em fumaça e que guia-se através de miragens noturnas? Não é o bastante ter que carregar pedras, azulejos e lápides durante o breve respirar? Decerto este casulo epidérmico não agüenta mais do que alguns murros ou um simples olhar afiado. Algumas pessoas até olham para o meu rosto e dizem haver nele algum brilho, um convite ao toque, ao afago ou ao beijo. É incrível como não percebem a rachadura transversal bem na face esquerda. É notável. Eu olho no espelho e este me mostra trincado. Mas não considero isso um problema a resolver. O peso, a altura e o jeito de andar dessas carnes sobrepostas numa carcaça nunca falarão do que vejo a partir dos intestinos. Se me percebessem ao avesso, me veriam melhor, mas ainda assim não veriam o corte no rosto nem sentiriam a falta de um pulmão aqui dentro.
Sendo névoa, neblina e nuvem, ignoro tripas, veias e artérias que me prendem ao chão. Me condenso e me disperso com um sopro. Me sublimo e me vaporizo. Ganho a instabilidade melíflua que o corpo me impede e me interrompe antes mesmo de dar um passo. Sou sublime: atravesso muros, paredes e jardins; invado os quartos dos que dormem e denuncio seus erros. Desligo a TV. Sou exaltado: prego a virtude (a minha) e revelo os vícios alheios. Não importa se os cães mordam minhas pernas ou se as pessoas me machuquem. Estou acima do corpo, dos músculos, da matéria. Sou um fantasma inebriado pela penumbra e não sinto nada além da proximidade da morte de todos. Sou um induto sem forma desnudando a manhã feita de limites, de infâncias e de zinco.
Depois que o primeiro ônibus sai às ruas, a alma se exaspera e o meu braço arranhado fica cada vez mais visível. Levo comigo assassinatos, adultérios, suicídios, mentiras, solidões, desafetos, súplicas, arrogâncias e inocências. Não sinto a relevância dessas rotinas. Mas meu corpo sente. Ele mostra aos que saem das casas o meu desacerto com o mundo. Sou desalinhado, sou uma curva perigosa, sou mendigo que esmola entendimento. Desdenho os líquidos derramados pelo corpo: sangue, lágrimas, suor, urina, pus, catarro, enfim, coisas de meus sistemas. Mas as pessoas se irritam com isso. Não gostam de lembrar que somos animais. Somos um instante formados à decomposição.
Sendo apenas um vapor (quem sabe talvez um orvalho) me desconsidero. Deixo o corpo à revelia do ar, à oxidação das peles e dos nervos. Enquanto os demais tomam banho e fazem o café matinal, eu simplesmente respiro. E corro. Somos pó. Poeira levantada durante a fuga.
[jb]
domingo, fevereiro 26, 2006
Hebdomática
SEG
Antes do poeta acordar o galo cantou o primeiro poema da aurora.
TER
Existir sem vida é coisa de rochas.
QUA
O troco do pão não paga a faculdade.
QUI
Formigas protestam que as migalhas são jogadas muito longe.
SEX
O sonho de toda criança é ver um arco-íris à noite.
SAB
Que sorriso é esse que mais parece a ferrugem das tuas preces
DOM
Guardas prendem um bandido que roubava o silêncio.
[jb]
Antes do poeta acordar o galo cantou o primeiro poema da aurora.
TER
Existir sem vida é coisa de rochas.
QUA
O troco do pão não paga a faculdade.
QUI
Formigas protestam que as migalhas são jogadas muito longe.
SEX
O sonho de toda criança é ver um arco-íris à noite.
SAB
Que sorriso é esse que mais parece a ferrugem das tuas preces
DOM
Guardas prendem um bandido que roubava o silêncio.
[jb]
domingo, fevereiro 19, 2006
Quem somos antes do amanhecer I
Durmo.
À espera do trem na estação. Atrasado. Impaciente. Sem medo.
Um uivo de lobo me jogou na poça de lama. Acordei da viagem. Não vi o trem. Ainda atrasado. Eu era o trem. Era atrasado. Tinha vagões rodas cargas passageiros ferrugens trilhos à frente. Respirei a própria fumaça que liberava do meu forno-pulmão-traquéia. Olhei com olhos de ferro os aços que rastejavam embaixo dos meus pés mecânicos. E segui numa direção sem curvas. E segui sobre pontes. E segui por penhascos. E segui os avisos. Embora quisesse seguir o olhar desalinhado do vento...
Não há semáforos em trilhos.
E trens são demônios que correm sem freios. Eu era um demônio sem freios. Acabei de esmagar um suicida. Pobre diabo. Eu apitei. Apitei. Apitei. E apitei. Pobre diabo atrasando a viagem. Corro porque tem gente esperando na outra estação. Atrasado. Pessoas olharam pra mim de cara feia. A minha é de metal mal lavado, mas não escondo a oxidação do tempo como aqueles. Penso sobre trilhos horários ramais vegetação a bolsa esquecida em casa com a escova de dentes. Não tenho dentes.
Sou uma fornalha.
Sou um carrossel que não gira. Sem cavalos nem crianças chorando. Apenas ursos no telefone celular. Penso em cinzas lenhas e carne humana. Inferno em trânsito. Do porto ao pórtico do mundo. Não voltarei. Adiante uma ponte esculhambada: trajeto interrompido pela escassez de cuidado. A negligência do ditador sentado numa cadeira roída. Abruptos gritos e lamúrias tardias. Mas trens andam para frente. E eu tinha a minha pressa. A alma na ferrovia. Segui. Bati na córnea do medo.
Amanheço.
À espera do trem na estação. Atrasado. Impaciente. Com asas.
[jb]
À espera do trem na estação. Atrasado. Impaciente. Sem medo.
Um uivo de lobo me jogou na poça de lama. Acordei da viagem. Não vi o trem. Ainda atrasado. Eu era o trem. Era atrasado. Tinha vagões rodas cargas passageiros ferrugens trilhos à frente. Respirei a própria fumaça que liberava do meu forno-pulmão-traquéia. Olhei com olhos de ferro os aços que rastejavam embaixo dos meus pés mecânicos. E segui numa direção sem curvas. E segui sobre pontes. E segui por penhascos. E segui os avisos. Embora quisesse seguir o olhar desalinhado do vento...
Não há semáforos em trilhos.
E trens são demônios que correm sem freios. Eu era um demônio sem freios. Acabei de esmagar um suicida. Pobre diabo. Eu apitei. Apitei. Apitei. E apitei. Pobre diabo atrasando a viagem. Corro porque tem gente esperando na outra estação. Atrasado. Pessoas olharam pra mim de cara feia. A minha é de metal mal lavado, mas não escondo a oxidação do tempo como aqueles. Penso sobre trilhos horários ramais vegetação a bolsa esquecida em casa com a escova de dentes. Não tenho dentes.
Sou uma fornalha.
Sou um carrossel que não gira. Sem cavalos nem crianças chorando. Apenas ursos no telefone celular. Penso em cinzas lenhas e carne humana. Inferno em trânsito. Do porto ao pórtico do mundo. Não voltarei. Adiante uma ponte esculhambada: trajeto interrompido pela escassez de cuidado. A negligência do ditador sentado numa cadeira roída. Abruptos gritos e lamúrias tardias. Mas trens andam para frente. E eu tinha a minha pressa. A alma na ferrovia. Segui. Bati na córnea do medo.
Amanheço.
À espera do trem na estação. Atrasado. Impaciente. Com asas.
[jb]
quinta-feira, fevereiro 09, 2006
Cobra-Cego
Arrasto a cadeira pelo taco encerado até a sala
com uma mão
Risco a parede imitando o caminho das lagartixas
com a outra
Meu pé direito
chuta o gato dormindo no canto abandonado
O esquerdo
pisa rápido sobre uma moeda perdida
não é possível distinguir a janela aberta
ou a porta fechada
com os olhos
ou a parede que descasca sua alma de isopor
Nem o ponto negro de uma mosca atrás do vidro
A poeira caindo sobre o sofá
A água jorrando desajeitadamente da pia
O tapete lambido de sangue
Com o corpo – guerreiro indivisível
rastejo até o teto alcançando a lâmpada
A luz é a única coisa que se vê no escuro
Mas não há aurora que resista à um pôr-do-sol
Sem sol
[jb]
Arrasto a cadeira pelo taco encerado até a sala
com uma mão
Risco a parede imitando o caminho das lagartixas
com a outra
Meu pé direito
chuta o gato dormindo no canto abandonado
O esquerdo
pisa rápido sobre uma moeda perdida
não é possível distinguir a janela aberta
ou a porta fechada
com os olhos
ou a parede que descasca sua alma de isopor
Nem o ponto negro de uma mosca atrás do vidro
A poeira caindo sobre o sofá
A água jorrando desajeitadamente da pia
O tapete lambido de sangue
Com o corpo – guerreiro indivisível
rastejo até o teto alcançando a lâmpada
A luz é a única coisa que se vê no escuro
Mas não há aurora que resista à um pôr-do-sol
Sem sol
[jb]
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